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Trocando as bolas

25 de Janeiro de 2019 às 12:04

Nelson Fonseca Neto –[email protected]

Imagine você viajando para o futuro. Sei lá, 2150. Você fará amizades por lá. Entre os seus amigos, haverá historiadores que olharão com interesse para o remoto ano de 2019. O que eles encontrarão? Será possível fazer uma síntese?

A coisa que mais ouvimos em 2019 é que o mundo está a cada dia mais complexo. Profissões surgem aos montes. Profissões são eliminadas. Youtubers têm milhões de fãs. A economia muda de uma hora para outra. Coachs e gurus tentam dar um sentido para a coisa toda. Estamos familiarizados com o discurso.

Mas o historiador de 2150 conseguirá chegar ao nervo dessa bagunça toda? Se for atento, sim. Eis o nervo: as crianças estão mais adultas e os adultos estão mais crianças. É algo polêmico de se dizer, mas não tem problema. Qualquer observador mais atento pode dar conta do recado e chegar ao que estamos afirmando. Comecemos com as crianças adultas.

Tem a ver com novas expectativas. Antigamente, em encontros sociais, pedia-se para a criança cumprimentar os outros adultos e dizer corretamente quantos anos tinha. Depois, tchau: vá brincar com a sua turma. Hoje é bem diferente. A criança precisa ser modelo/poeta/desenhista/cantora. Sempre tem que aparecer um maldito adulto com o celular dizendo “filhoooooo, olha aqui!”. E dá-lhe vídeo constrangedor rolando por aí.

Hoje é mais difícil ouvir o glorioso “vá brincar com a sua turma”. Isso só acontece se tiver um recreacionista com doutorado por perto. Do contrário, a criança tem que participar da conversa. De preferência, falando educadamente, sem fazer perguntas impertinentes, usando bonitinho os talheres. Estamos falando de crianças de 3, 4 anos. Pois é, o sadismo tem mil faces.

Se a criança passa a ser vista como um adulto em miniatura, é necessária a criação de um mundo adulto em miniatura. É a coisa mais comum do mundo ir ao shopping e ver carrinhos elétricos carregando as crianças. São réplicas de carros de luxo. É um horror. Mas não fica nisso. Em 2019, as pessoas ficaram craques na arte de chegar ao fundo do poço e cavar mais um pouquinho. Tem feito sucesso um serviço que aluga limousine para levar crianças a festinhas de aniversário. Vem junto um maquiador. Há tacinhas imitando champagne. Acho que deu para entender a cena do sujeito que chega ao fundo do poço e cava um pouco mais.

Chegou a vez dos adultos crianças. O quadro é igualmente perturbador. Onde encontrar exemplos de infantilização? Vixe, não é difícil. Pense na academia de ginástica. Minutos antes de escrever esta coluna, tive de ir ao caixa eletrônico que fica num dos shoppings da cidade. Parte do estacionamento estava ocupada por várias pessoas dançando ao ar livre. Era uma aula de aeróbica. (Não sei o nome correto da aula. Uso “aeróbica” porque cresci nos anos 80.) Não comentarei a respeito da música. O que chamou a atenção foram os gritinhos frenéticos. Vai ver estou precisando de ajuda, mas não consigo dar uma bandeira dessas.

Outro bom lugar para encontrar infantilização: palestras. Deixemos de lado o conteúdo. Tem palestra de tudo quanto é tipo. O que pega é a tela que fica atrás do palestrante. Vai ver que é bobeira minha e eu não percebi que foi criada uma lei que obriga o palestrante a usar recursos de som e vídeo. Tem que ter um vídeo de abertura e um vídeo de encerramento. De preferência tem que ter um locutor de voz bem grave e sábia. Não pode faltar a música comovente. Tem que ter criança fofa e velhinho simpático. No meio da apresentação, fotos ilustram a performance do palestrante. Eu tenho uma curiosidade danada: descobrir quem escolhe essas fotos. Deve ser um baita de um negócio. Repare quando você for à próxima palestra: espera-se que você chore depois do último vídeo. É que, agora, chorar é bacana. Claro que é bom chorar de vez em quando. Eu diria que é necessário. Dureza é quando esperam que você chore umas cinco vezes por dia. É a síndrome do famoso que vai ao Faustão. Tem que chorar quando aparece o familiar no vídeo. Interessante notar que o famoso que vai ao Faustão chora ao ver o familiar com quem ele se encontra sempre. Nem saudade há.

O historiador de 2150 verá as bolas trocadas e perceberá que elas explicam muitas e muitas coisas.