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Sobriedade

06 de Novembro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Os EUA pegam fogo nesta semana por conta das eleições presidenciais. Muita gente ao meu redor comentando a respeito. Eu me deparo com análises de alto nível e com opiniões estapafúrdias. Muito ruído.

Você leu o primeiro parágrafo deste texto e está achando que vou me colocar acima das tretas do mundo. A culpa é minha. Dei uma de malandro nas linhas iniciais. Não estou acima das tretas do mundo. Sintam o drama.

Tenho o vício de acompanhar atentamente o dia das eleições norte-americanas. Quase vinte anos que a banda toca assim por aqui. Fim de noite, ponho na CNN. Acompanho os numerinhos que vão pipocando na tela. Interpreto razoavelmente bem os mapinhas que mostram Estados e condados. Fico horas nessa toada. E é por essas e outras que não posso dizer que estou acima das tretas do mundo.

Percebo que acabei de dar uma segunda rasteira em você. Você achou que meteria o bedelho nas eleições presidenciais dos EUA. Culpa minha novamente. Eu acompanho a parada na CNN por diletantismo. Só isso.

Qual o assunto desta coluna, oras? Chegamos ao ponto. O assunto: a sensibilidade sóbria. Vamos lá. Os numerinhos frenéticos da CNN simbolizam a velocidade e o frenesi. Tudo pode mudar em alguns minutos. Já falei, logo acima, que mergulho nessa parada de quatro em quatro anos. Ou seja: sou moderado. Pelo menos numa coisa desta vida eu sou moderado.

Uma analogia meio besta: ficar pilhado na coisa veloz é que nem comer doce sem qualquer tipo de freio. Vicia parecido. (Prometo não entrar nos detalhes, pela milionésima vez, do meu regime.) Pois então. O negócio é o seguinte: o sujeito tem que se policiar. Se bobear, nessa história de tudo aqui e agora, o sujeito tem uma vida infernal, rasa, tosca, pobre.

Hoje mesmo eu estava conversando com a Patrícia sobre algo que tem a ver com o que estou tratando aqui. Muitos sites de notícia estão reforçando a velocidade máxima quando postam seus textos. Aparece um relógio marcando quanto tempo o leitor levará para encarar determinada crônica ou reportagem. Tem também, quando a pessoa clica no texto, um resuminho do texto, em alguns escassos tópicos. É o resumo de algo resumido.

Eu ficaria bilionário se ganhasse um real a cada vez que tivesse de dizer quantas páginas eu leio por minuto. Eu seria mais ricão que o Bill Gates se ganhasse um real a cada vez que tivesse de opinar a respeito de leitura dinâmica e métodos afins. Sei lá se essas paradas funcionam. Enfim, coisas da vida.

A sensibilidade sóbria é um bom remédio contra essa noia de querer tudo aqui e agora. Contra essa noia de se empanturrar de números e julgamentos exacerbados. Contra essa noia de andar numa montanha-russa de emoções extremas. Você reparou no tanto de gente que gargalha e chora a rodo? É a “Síndrome do Arquivo Confidencial”. “Arquivo Confidencial” é um dos quadros do programa do Faustão. Nem sei se tem ainda. Um famoso é entrevistado pelo Faustão. No meio do percurso aparecem familiares e amigos do famoso. O famoso sempre chora. Eu me coloco no lugar do famoso. Tenho a sorte de ver a Patrícia e o João Pedro todos os dias. Se eles aparecessem dando um “oi” no vídeo, eu não desidrataria de tanto chorar. Aí a coisa alastrou. Todo mundo se vê na obrigação de chorar, mesmo nas situações mais prosaicas. É uma praga.

A sensibilidade sóbria é lenta, estável, discreta. Ela é contemplativa. Ela passa longe da produtividade e dos números piscando na tela. Ela não berra. Ela não chora. Ela não gargalha. Ela tem pudor.

Há muitos casos de sensibilidade sóbria na literatura. Muitos mesmo. E é por isso que ela nunca morrerá. Nessas horas, penso em Kent Haruf, símbolo da sensibilidade sóbria. A melhor maneira de qualificar seus livros: milagres.