Resmungar é preciso
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Escrevo neste espaço há quase nove anos. Tentei de tudo um pouco para a coisa não cair no tédio: resenhas, dicas de leitura, memórias, desabafos, palhaçadas. Não foi planejado. Nesse tempo todo, as colunas refletiram meu estado de espírito. Posso dizer que o espaço que o jornal concede a mim funciona como um sismógrafo da alma.
Apesar das tentativas de variação, pode-se encontrar algo que sempre tem aparecido nos textos que escrevo aqui: o resmungo. Sou, por vocação e por esforço, um resmungão. Favor não confundir com briguento. O resmungo é inofensivo. É uma necessária higiene mental. Eu não consigo ver flores em tudo.
Resmungo por qualquer besteira. Covardia dizer que isso sempre acontece no trânsito. E olha que, por sorte, passo pouco tempo do meu dia no carro. Também é covardia dizer que resmungo quando estou num recinto com mais de três pessoas. Não tenho paciência com a conversa alheia. Tudo piora quando uma dessas pessoas fala berrando. Sempre tem alguém que fala berrando perto de mim. Melhor encerrar este parágrafo aqui: ele pegaria a edição inteira do jornal que você está lendo.
Quando a gente é craque no resmungo, acaba desenvolvendo um método. Sou capaz de categorizar meus resmungos. O que você leu no parágrafo anterior pertence à categoria dos resmungos miúdos do cotidiano. São as implicanciazinhas de cada dia. Todo mundo as tem. Quero ver admitir.
A segunda categoria de resmungos envolve os tipos de pessoas que cruzam a minha vida. A Patrícia diz que tenho ficado cada vez mais urso. Ela tem razão, em partes. Não tem totalmente porque não é verdade que eu sonho com o isolamento absoluto. Tenho amigos. Amo minha família. Sou gentil com os colegas. Aqui, o que ocorre é o seguinte: desenvolvi um senso agudo de reconhecimento das pessoas. Em poucos minutos, sei dizer se o indivíduo é falastrão, se é prolixo, se é um monte de coisas. Cada um com o seu cada um, claro. Que todos sejam felizes. Só que algumas categorias não batem com o meu gosto. Aí, não tem conversa. Claro que eu não vou entregar o ouro aqui e dizer as pessoas com quem o meu santo não bate. Quero continuar circulando em paz pelas bucólicas vias da cidade.
A terceira categoria de resmungos trata dos grandes problemas dos nossos tempos. Seria miopia da minha parte concentrar os resmungos naquilo que me é muito próximo. Talvez você estranhe que eu diga uma coisa dessas. Esta coluna não prima pela pelo engajamento. Sei que passo a imagem de indiferente diante de um mundo que pega fogo. Não é indiferença; é preguiça. Não é indiferença; é a constatação dos meus limites. Não sou um bom debatedor. Tenho amigos, aos quais admiro sem restrições, que se envolvem em polêmicas nas redes sociais. Acompanho os perrengues pelos quais eles passam. Também tenho a exata noção de que este espaço não é lido apenas pela minha família. Se eu resolvo subir um pouco a temperatura, sei que virão os comentários. Tenho receio desses comentários. Não vivemos uma época das mais auspiciosas no quesito “qualidade intelectual do debate brasileiro”.
Mas não quero que este texto seja marcado pela névoa e pela entrelinha. Por exemplo, eu resmungo com o que se tem feito com boa parte do jornalismo impresso. Eu tive a sorte de pegar uma época em que os jornais investiam mais em matérias investigativas de peso. Se você perguntar a mim qual seria uma boa corda para sairmos do fundo do poço, eu diria: a volta forte do jornalismo investigativo.
O problema é que jornalismo investigativo custa tempo e dinheiro. Os jornalistas envolvidos na matéria não podem ser pressionados por pautas miúdas. A equipe do jornal precisa bancar uma aposta que exige paciência, idas e vindas. Tudo tem que ser minuciosamente checado. Demora. É enervante. É frustrante. É muito mais fácil e barato ficar na superfície das coisas. É muito mais fácil e barato simplesmente dizer que no dia tal, em tal horário, no lugar X, fulano passou por um perrengue qualquer. Óbvio que o jornal tem que dar espaço para uma matéria dessas. Mas precisa ficar só nisso? Não seria interessante explicar que o perrengue passado pelo fulano também é o perrengue de outras pessoas? Que esse perrengue não é um fenômeno da natureza e que tem gente grande responsável pelo perrengue? Imagine isso aparecendo num texto maduro, sem firulas, sem a maldição do entretenimento.
Alguns dos meus resmungos são idiotas. Outros, nem tanto assim. Acho que isso acontece com todos nós.