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Pesadelo

31 de Agosto de 2018 às 11:19

Nelson Fonseca Neto 

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Depois do panetone de calabresa, o mundo não me surpreende. Foi uma longa jornada até o porto da sabedoria. Cumpre esclarecer que ausência de surpresa não é a mesma coisa que indiferença. Dependendo da bizarrice, a situação pode ser divertida ou patética.

Bem que eu gostaria de escrever este texto com espírito folgazão. Mas tem hora que a vida não ajuda. Em dias assim, a gente sonha com o fim da internet. A sequência de idiotices traz uma nostalgia medieval. Mais ou menos assim: tá bom, moçada, chega de internet; vocês não souberam aproveitar; agora, paciência.

É que, na semana passada, alguém compartilhou, no Facebook, um vídeo de uma coach. Coisa de dois minutos, mais ou menos. A coach estava de terninho, havia uma telona no fundo. A voz era de palestrante treinada. O olhar transbordava sabedoria e superioridade. O problema era o que ela estava falando.

Tem coisa que a gente pensa mil vezes antes de reproduzir. Pelo ridículo, pelo grotesco, pela falta de noção, pela falta de pudor, a gente pensa mil vezes antes de reproduzir. É que a gente sente vergonha da humanidade. Mas o compromisso com a verdade fala mais alto. Peço perdão para o que vocês lerão a seguir.

A coach disse que os judeus nos campos de extermínio estavam lá porque eles, os judeus, não tinham objetivos claros na vida. Que estavam desmotivados. Eu juro que gostaria de entender uma pessoa que diz uma coisa dessas. Lembrando: foi numa palestra bastante formal. Ou seja: a fala não saiu de improviso. Aquilo foi exaustivamente ensaiado. É muito assustador.

Mais assustador ainda é perceber, no vídeo, que a coach diz esses absurdos com a empáfia de quem acabou de botar a plateia no bolso.

Por sorte, o vídeo recebeu uma avalanche de críticas. A humanidade ainda tem salvação.

Pode ser que alguém diga que estou pegando pesado com a coach. Que foi um lapso. Que essas coisas acontecem. Que foi uma infelicidade. Desculpem, mas não tem perdão. É que nem youtuber que passa anos falando horrores e, num momento, quando a fatura chega, faz vídeo quase chorando, tentando mostrar arrependimento. Talvez alguém caia nessa. Eu não caio. Certamente a coach aparecerá nos próximos dias tentando salvar a própria pele. Não desejo mal a ela: só não acredito no que ela tem a dizer.

Eu digo isso porque sei que tem um monte de coach que bate no próprio peito na hora de proclamar seu conhecimento e erudição. A coach não precisaria ter encarado vasta bibliografia para saber que os judeus não estavam em Treblinka, por exemplo, porque não tinham propósitos claros na vida. Acho que não foi por ignorância que ela disse aquelas coisas. E isso não alivia a barra dela.

O vídeo pavoroso existe porque a coach quis brilhar com a analogia inusitada. Ela quis ser enfática. Ela quis deixar a impressão digital da ousadia intelectual. Ela quis criar uma reserva de mercado. Ela percebeu que a palestra tinha que ser polêmica. Hoje, ser paciente é ser lerdo. Hoje, intelectual é alvo de tiração de sarro. Hoje, se você não ranger os dentes e não der tapas na mesa, você é visto como fracote. A coach simplesmente percebeu como a banda toca. Foi de caso pensado, para fortalecer a marca. E isso não tem perdão.

Nem tão no fundo assim, a coach escancara o que vemos por aí. Ou é raro encontrarmos gente se orgulhando da grosseria, da ganância mórbida, da vulgaridade? Não é, e vocês sabem disso. Capaz dessa coach virar celebridade. E capaz dessa coach cobrar uma fábula por uma palestra. Capaz dessa coach, se ler este texto, rir de mim. Sim, de mim, o fracassado, o ingênuo, o puritano, o cara que não conhece as regras do jogo.

Preciso confessar a vocês que, nessas horas, sinto um orgulhinho de ser o cara que não conhece as regras do jogo.