Perfeição
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Na semana passada, esta coluna foi uma lista de coisas que me aborrecem com intensidades diferentes. Pensei que a bizarrice pararia ali. Não parou. Ao longo dos últimos dias, outras listas foram surgindo na minha cabeça. Teve de tudo um pouco. De besteiras a coisas solenes. Acho, sem brincadeira, que se eu publicasse essas listas aqui, teríamos mais de um ano de textos. Não se assustem. Não concretizarei uma coisa dessas. Mas tenham paciência e acompanhem mais uma lista.
A de hoje surgiu por conta de um incômodo. Vira e mexe, converso com a Patrícia a respeito. Acho que o assunto ganha força entre pais de crianças bem pequenas. É que nessa fase a gente quer gabaritar. Queremos ser Michelângelos na arte de educar um bebê. Tudo é esquadrinhado. As comidinhas mais nutritivas. Podemos ligar ou não a televisão perto do João Pedro? E telefones celulares? Música clássica ou “Palavra cantada”? Criança agasalhada ou com pouca roupa? Deixar dormir ou acordar em determinados horários? E a escolinha? Uma montanha de perguntas.
Acho que tudo estaria bem encaminhado se estivéssemos nos anos 80. Teríamos poucas fontes para consultar. Tocaríamos o barco mais facilmente. O drama é que temos, hoje, muita coisa ao redor para reforçar a busca pela perfeição. Do texto no Facebook ao vídeo no YouTube, são milhares de consultores e consultoras desfilando sua sabedoria pelas mais diferentes regiões da vida cotidiana. Vejo essas pessoas e preciso brecar o maldito complexo de inferioridade. Puxa, eles são tão perfeitos! Puxa, eles são tão seguros! Puxa, eles são tão sábios! Mas rapidinho a minha arrogância prevalece. E eu acabo notando que muita gente ganha a vida fazendo pressão para que tenhamos a vida perfeita. Importante dizer que a minha reclamação não tem a ver com “politicamente correto”. O que me incomoda, para ser mais claro, é a conversa aparentemente branda que humilha quem não tem a vida linda e plena mostrada naquele videozinho maneiro. Assim, a listinha de hoje contempla casos irritantes que tentam esfregar em nossas caras a vida perfeita. Vamos lá, sem mais enrolações.
Comerciais no YouTube. Bom, começa que é um terror ver um vídeo qualquer e ser interrompido pela propaganda da nova música do Gustavo Lima. Algumas dessas propagandas são bem estridentes. Cada susto que a gente leva. Já seria grotesco em condições normais de temperatura e pressão. Imaginem o drama numa pandemia. Imagens de ruas e avenidas vazias. Música melosa. Pessoas perambulando por apartamentos com hortinha na sacada. Voz comovida do locutor. Pessoas fazendo micagens nos apartamentos. Pessoas olhando tristes pelas janelas dos apartamentos. Referências ao isolamento social. Como se estivéssemos numa guerra. Nessas propagandas, o Brasil transforma-se numa gigantesca Vila Madalena. Antes que apareça alguém interpretando errado: sou dos que acreditam que o isolamento social é crucial nesta fase da pandemia. Solto a marreta nessas propagandas por conta da maldita glamourização da coisa toda.
Pessoas com habilidades manuais que acham ser possível criar tudo a partir de um barbante e de um toco de madeira. Normalmente, as pessoas com o dom das habilidades manuais exalam serenidade. Certamente vocês já se depararam com figuras assim nas telenovelas. É o sujeito esquisito que vê todos ao redor dançando feio com a correria da vida. É o sujeito esquisito que aparece no final de um perrengue com uma xícara fumegante de chá para acalmar os frenéticos. Abundam os vídeos desses caras humilhando pessoas como eu. (Só há pouco tempo entendi o mínimo do mínimo da caixa de força aqui de casa).
Pessoas que acreditam que vivemos no cenário das histórias do Chico Bento. São pessoas que acreditam que a criança será feliz somente se estiver perambulando por um farto pomar. De preferência, com muitas galinhas e codornas ao redor. Pé descalço na terra úmida. Essas coisas. Isso tudo em 2020, com a urbanização correndo solta. A sacanagem é passar a ideia de que tudo será uma tragédia se a criança não tiver o pomar e as codornas por perto. Claro que aprecio o pomar e seus apetrechos. Só sou contra usar esses elementos como um punhal a ser cravado nas costas de pais urbanos.
E assim encerramos mais uma grotesca listinha.