Outros tempos de quarentena
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Impossível não pensar em besteiras no isolamento. Um exemplo: como seria a quarentena no final dos anos 80? Algum chato meticuloso responderá: não tem como saber. Eu sei que não tem, caramba. Mas será que eu não posso dar asas às maluquices? Dane-se o chato meticuloso. Em frente!
Seria muito mais fácil de fazer a quarentena nos anos 80. Vocês não venham me dizer que nem todo mundo tem a chance de se isolar numa pandemia. Isso é de uma obviedade cavalar. Eu estou falando dos que têm a chance de se isolar e não se isolam. E por que essas pessoas mandaram o isolamento para as cucuias?
Há os casos óbvios de gente que não consegue abrir mão de certos hábitos. Não escrevo uma coisa dessas como se fosse um sábio. Eu iria além: se meu nome fosse Nelson Hábito, ninguém estranharia. E há os vícios que me atormentam também. Se bem que venho lidando ousadamente com eles.
Diminuí drasticamente o cigarro. (Antes que apareça o chato: sim, eu vou parar de vez. Diminuir ferozmente a quantidade de cigarros consumidos já é uma conquista. Só quem passou pelo drama sabe do que estou falando.)
Parei de comer doce. Não mais chocolates depois do almoço ou no fim da tarde. Não mais tortas e sorvetes. A gente vai levando. É tranquilo na maior parte do tempo. Só complica quando aparece alguma propaganda de doceria na internet. O duro é que não sou dos apreciadores refinados de doce. Conheço gente que se contenta com um humilde pedaço de chocolate amargo. Eu sigo a linha oposta. Sou dos que babam por causa daquelas taçonas com meio litro de sorvete com Nutella escorrendo abundantemente. Mas parei de comer doce. E parei porque, na velhice, se der vontade de comer chocolate, não precisarei fazer isso escondido.
E lá vou eu divagando. Eu estava falando de gente com dificuldade de abrir mão de certos hábitos. Puxa, estamos juntos! É difícil pra caramba. Mas não me peça para achar bacanas as escapadas a barzinhos, churrascos e festinhas. É triste constatar: o Brasil não é um país de festeiros; o Brasil é um país de alcoólatras.
Mas o que isso tudo tem a ver com os anos 80? Insisto: seria mais fácil fazer esse pessoal que tem chance de se isolar segurar a onda. Eu aposto muito alto que muitas das escapadas a festinhas, churrasquinhos e afins são movidas pela certeza de que tem muita gente exagerando o tamanho da pandemia. Esse lance de sair de peito aberto, com cara de orgulho, vem das maluquices disseminadas por grupos de WhatsApp. Vocês não encontrarão essas paradas nos telejornais clássicos ou nos principais jornais da cidade. Já ouvi muita gente falando orgulhosamente de tratamentos alternativos que blindam o sujeito dos efeitos do que está acontecendo. Não tem como dar certo.
Nos anos 80, a balbúrdia seria menor. Não ia ter tanta gente batendo o bumbo de formas tão grotescas. Receberíamos o que os principais meios divulgariam. Haveria menos margem para esse inferno de teorias bizarras. O Cid Moreira diria: façam o isolamento. E nós acataríamos. Certamente o índice de isolamento seria maior naquelas semanas cruciais, quando era possível virar o jogo.
Por favor, entendam: não estou, aqui, dizendo que os anos 80 eram o paraíso na terra. Não eram. Eu ficaria horas enumerando as maravilhas de 2020. Apenas tentei imaginar como seria o isolamento nos anos 80. Humildemente, arrisco que seria mais fácil.
E, aí, não tem jeito, uma coisa vai puxando a outra. Passo a imaginar como as pessoas passariam as horas de isolamento sem internet, sem celular e sem TV a cabo. “Sessão da tarde” na veia! O que seria delicioso. Muitas obras-primas apareciam ali.
Esse lance de “Sessão da tarde” já trouxe a inspiração para a coluna da próxima semana. Vou chafurdar nas delícias das narrativas do estilo “Trocando as bolas”. Aguardem.