O terror dos grifos
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Tenho um Kindle desde agosto de 2018. Para quem não está por dentro: o Kindle é um leitor eletrônico. Nele eu consigo arquivar centenas livros. A luminosidade da tela não é agressiva como a do celular. Há várias opções que eu ignoro no aparelho. Não sou de fuçar toda a potencialidade das geringonças. Não tem explicação. Talvez seja pura preguiça.
Mas eu estava falando do Kindle e não das minhas limitações. Muita gente se surpreende por eu ter aderido à moda do livro eletrônico. Tenho alguns amigos que dizem que o cheirinho do papel é insubstituível. Sem contar o tato. Sem contar que a casa fica mais bonita com uma estante repleta de lombadas coloridas. (Falando nisso, um dia ainda escrevo uma coluna a respeito dos cenários de fundo nas lives que pululam na pandemia.)
Impossível discordar. Algumas das paredes do nosso apartamento são ocupadas por estantes. Há milhares de livros que deixamos na chácara do meu sogro e da minha sogra. Tem mais um tanto na casa do meu tio Kazuo. Tudo muito lindo e edificante, até surgir a necessidade de transportar esses livros do ponto A ao ponto B. Tivemos uma ideia do drama no ano retrasado. Uma empresa de mudança foi contratada para fazer o serviço. A empreitada começou no meio da tarde e só foi terminar perto da meia-noite.
Esse tipo de situação faz a gente reavaliar algumas convicções. Até então eu também tinha uma visão mais poética a respeito do acúmulo de livros. Certamente a maldita preguiça que vem depois que a gente cruza a fronteira dos quarenta anos teve um peso grande. Esse lance da mudança aconteceu um mês e pouco antes de eu ganhar o Kindle da Patrícia. É a vida conspirando.
Quando eu digo que tenho lido muito mais no Kindle, não defendo que ele é a perfeição. A perfeição não é deste mundo. Só estou dizendo que é mais prático e mais barato. Mas tem lá as suas chateações. Vou falar da mais evidente.
Acho bom começar este assunto dizendo que uma parte é culpa minha. Já falei a respeito no início deste texto. Não sou de fuçar as geringonças eletrônicas. Sempre aproveito muito pouco do seu potencial. Sintam o drama. Tem um mecanismo no Kindle chamado “destacador”. É o bom e velho hábito de grifar, só que sem caneta, claro. Um trecho chama a atenção do leitor e ele recorre ao “destacador”. É um movimento simples, realizado com a ponta do dedo. Você pode arquivar os trechos destacados numa pastinha. Facilita enormemente a vida dos grifadores crônicos. Quer dizer, acho que facilita. Nunca tentei. Tenho medo de travar o aparelho.
Até aí, tudo bem. A coisa piora num aspecto que seguramente muitos considerarão menor. Quando você destaca um dado trecho, isso aparecerá para outras pessoas que baixarem o título a partir daquele momento. Não gosto disso. Não sei desabilitar o recurso. Perco o fio da meada quando leio livros grifados por outra pessoa. Não entra aqui qualquer mania de limpeza ou de simetria. É que eu me distraio pensando na pessoa que grifou aquele trecho. Por que grifou? Estava triste? Estava contente? Grifou só de farra? Grifou porque encontrou a sabedoria naquelas poucas frases? Grifou porque estava estudando para alguma avaliação? Enfim, a doideira corre solta por aqui.
Tudo seria engraçadinho se eu não percebesse um padrão nos trechos grifados dos livros que eu leio no Kindle. Quase todos eles são, na falta de uma expressão melhor, “pepitas de sabedoria”. Como se as pessoas que destacaram o trecho estivessem em busca de frases lapidares para serem usadas em palestras motivacionais. Isso ficou evidente num livro que eu li no domingo passado. Era a autobiografia da genial comediante Tina Fey. O humor dela, genial, é dos mais ácidos. Fui notando que trechos de pura ironia estavam sendo encarados por outros leitores como uma doce lição da autora. Nada mais distante do que ela quis fazer.
A primeira reação é achar o lance dos trechos destacados como algo cômico. Depois surgem os pensamentos mais sombrios. Inevitavelmente batemos na amarga constatação de que vivemos na “coachlândia”. Um mundo dominado por pensamentos edificantes e lapidares. Um mundo do “bola pra frente”. Um mundo que acha que as coisas se resolvem apenas com o pensamento positivo.