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O tagarela (conto primeira parte)

24 de Julho de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

É impressionante como as pessoas não se percebem. Vem daí boa parte dos episódios envolvendo um chato aporrinhando um pobre ouvinte. O chato quase nunca se vê como chato. É o entorno, digamos assim, que crava se um sujeito é chato ou não. Não precisa ser muito inteligente para constatar que um cenário desses tem lá a sua cota de tristeza.

Digo essas coisas porque me considero, recorrendo a uma expressão irritante, “um ponto fora da curva”. Eu sou chato e nunca neguei. Comigo funciona maravilhosamente bem a “teoria da escada”. Não sei se vocês conhecem. Ela descreve a situação em que um cara ouve um monte de abobrinhas quando está prestes a sair de um apartamento, mas fica quieto e só encontra a resposta perfeita, daquelas devastadoras, depois de ter descido a escada, com a situação encerrada. Ou seja: o cara da teoria é meio ruinzinho de “timing”. Só consegue fazer as coisas depois do estrago. Comigo é assim, guardadas as proporções. Eu chateio alguém e só me dou conta alguns minutos do fim da conversa.

Vocês notaram que eu sou um chato que pertence ao domínio da tagarelice. Não quero fazer aqui um tratado da chatice. Vocês só precisam saber que há material para milhares de páginas. Mas fiquemos com um aperitivo. Tem o chato tagarela (no caso, eu); tem o chato dos barulhos (falando no celular ou acelerando a maldita motoca); tem o chato perfeccionista (transformando um jantar oferecido aos amigos no evento mais relevante do ano); tem o chato messiânico (dono da verdade, meio coach).

Pensando assim, minha chatice é das mais inofensivas. Bom, vejo que a estou exercendo aqui, ao enrolar e não dizer o mais importante. A saber: sobre o que tagarelo e por que tagarelo. É fácil responder à primeira parte; muito difícil responder à segunda parte.

Eu tagarelo a respeito da minha carreira de jogador de futebol no final dos anos 80 e início dos anos 90. Olhando com calma para a minha chatice, acho que o bicho pega porque sempre acho um jeito de falar sobre a minha carreira de jogador de futebol, não importa o que está sendo discutido até então.

Acho que vocês já viram gente assim. É a velha analogia da vitrola quebrada ou do disco riscado. Comigo é assim. Meu interlocutor está tratando, sei lá, do dólar alto. Eu arrumo um jeito de relembrar a cotação no início dos anos 90. Engato que, naquela época, acontecia assim e assado. E sem qualquer transição vou falando de jogos marcantes ou de polêmicas em que estive envolvido. Se a pessoa está conversando comigo pela primeira vez, até passa. O duro é a partir do segundo encontro. Meu interlocutor começa a perceber que sou, perdoem o drama, um refém do passado.

É duro morar numa cidade dita de médio porte. Pior ainda quando essa cidade cresceu bastante nos últimos anos. Ficamos confusos. Passamos a infância e a adolescência num lugar que, para fins psicológicos, parecia uma vila. Aquela velha história de todo mundo se conhecer. Em poucos anos, essa noção vai se esfarelando. Fica aquele sentimento de vila, mas tem, ao mesmo tempo, uma multidão que ignoramos. O tom de sociologia de botequim que vocês acabaram de ler está aparecendo porque quero explicar o que de inusitado acontece com um chato da minha estirpe.

Na cidade com cara de vila, a gente vira figurinha carimbada. As pessoas acham que disfarçam. Elas são ingênuas, isso sim. É claro que eu percebo quando alguém com quem estou conversando inventa uma desculpinha para escapulir da minha presença. E por aí vai.

A cidade com cara de metrópole, por outro lado, fornece estoque de ouvintes que não conhecem a minha história de jogador de futebol no final dos anos 80 e início dos anos 90. Se bem que as redes sociais estão aí para complicar o meu estilo de vida baseado na chatice. Não me surpreenderia se alguém dissesse que tem uma comunidade com a minha foto e com o nome de “o chato do futebol” circulando por aí. Nunca se sabe.

Mas acho que vocês querem conhecer, assim espero, os aspectos marcantes de uma carreira, sem querer advogar em causa própria, trepidante.

(Continua na próxima semana.)