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O horror necessário de Svetlana

06 de Março de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Eu sempre achei esquisito quando alguém vinha dizer que tinha parado de ler um livro porque achava que aquelas páginas eram sombrias demais. Sendo bem honesto: eu achava que era sensibilidade em demasia. Isso vem mudando nos últimos tempos. Certamente tem a ver com o nascimento do João Pedro.

Eu acompanhava atento as chamadas grandes questões do nosso tempo, mas nunca me senti realmente afetado por elas. Por exemplo, as consequências do aquecimento global me preocupavam, mas não a ponto de me tirarem o sono. Hoje elas tiram. É claro que eu penso no João Pedro e em outros nenês. Se não nos mexermos, eles terão de lidar com uma encrenca dos diabos. Se você acha que estou exagerando, leia “A terra inabitável”, de David Wallace-Wells. Tira o sono de qualquer um que tenha mais de dois neurônios.

Por ser professor há vinte anos, é óbvio que os problemas educacionais sempre tomaram conta dos meus pensamentos. Mas não com a intensidade com que vem ocorrendo de um ano para cá. Não é aquele lance de pensar apenas na educação do João Pedro. Isso acontece, claro. Não tinha como ser de outro jeito. Mas venho pensando muito mais na educação que oferecemos a milhões de crianças e jovens. Colheremos os frutos amargos dessa tragédia em poucos anos.

Bom, ficou claro que o João Pedro me tornou um cara mais atento a vários pontos importantes da nossa vida. Mas o principal não é isso. O nascimento do João Pedro me ensinou o exercício verdadeiro da empatia. Sei que falar de empatia tem sido clichê. Vários coachs e psicanalistas de quinta categoria sequestraram a palavra. Não quero nem chegar perto dessa abordagem picareta. Estou falando de algo mais nobre e profundo.

Eu ficava indignado quando alguém tratava mal uma criança. Sempre tive de me segurar para não baixar o nível ao ver um pai ou uma mãe massacrando um menininho ou uma menininha. A vinda do João Pedro deu mais uma volta no parafuso nessa história toda. Ver um pequeno sendo sacaneado machuca o corpo e machuca a alma. Eu fico transtornado. Eu tenho vontade de chorar. Eu tenho vontade de fazer alguma coisa por essa criançada. Eu também tenho me colocado muito mais no lugar de gente sofrida que vê os filhos passando algum tipo de sufoco. Eu tenho me colocado muito mais no lugar de pais que sofrem quando o filho é humilhado -- e são várias as formas de humilhação -- na escola, na rua, no condomínio.

Foi nesse estado de espírito que resolvi ler o mais novo livro de Svetlana Aleksiévitch publicado no Brasil: “Meninos de zinco”. Svetlana ganhou o Nobel de Literatura em 2015. A escolha foi certeira. Interessante que ela não representa a imagem tradicional que fazemos dos escritores. É que, normalmente, achamos que o escritor vive boa parte do tempo isolado do mundo. Com ela é o oposto. Svetlana não escreve ficção; ela escreve literatura documental. Seus livros são povoados por depoimentos que ela foi colhendo ao longo de suas andanças. Os assuntos sempre são espinhosos: desastre nuclear, Segunda Guerra Mundial, incursão soviética no Afeganistão, stalinismo. São obras que representam a nobreza da literatura oral. E elas necessariamente perturbam.

Mas nenhum de seus livros chega perto de “Meninos de zinco”. Nele encontramos o que foi o desastre da invasão da ex-União Sovietica no Afeganistão. Em suas mais de trezentas páginas, somos sufocados pelas vozes de mães e pais que perderam seus filhos no conflito e pelas vozes dos mutilados e mutiladas (física e psicologicamente) que voltaram a um lar que não os recebeu bem.

Sempre aprendemos muito com os livros de Svetlana. A História aparece a partir de ângulos quase sempre ignorados. Sentimos os desastres na vida miúda de muita gente. Na minha modesta opinião, isso é muito mais relevante que os detalhes de um tratado assinado solenemente. Mostrar essas coisas é uma das marcas de Svetlana. Mas em seu último livro tudo fica mais sombrio porque nos deparamos com mães e pais sofridos.

E assim, nos últimos dias, vivi o paradoxo de estar encantado com as páginas que estava lendo e tentado a largar aquele horror. Como entendo agora os que fecham um livro barra-pesada!