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O gigante Rubem Fonseca

17 de Abril de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Rubem Fonseca morreu na quarta-feira desta semana. No meio da desgraça em que vivemos, a notícia não teve a repercussão merecida. Não dá tempo de lamentar as grandes figuras que estão nos deixando neste ano que entrará para os registros como o auge da burrice criminosa brasileira.

Precisamos urgentemente de um Rubem Fonseca. Ele, como ninguém, retratou o pesadelo das grandes cidades brasileiras. Publicou seus primeiros contos na década de 60. Chacoalhou bonito o cenário nacional. A crueza dos seus contos -- tanto na construção de personagens e enredos quanto na linguagem -- estarrece o leitor de primeira viagem. Isso acontece ainda hoje, quase sessenta anos depois de sua estreia. Não é difícil imaginar o impacto da bomba que ele lançou na época.

Não estou aqui para dizer friamente que Rubem Fonseca é dos nossos grandes escritores. Gente muito mais qualificada escreverá ensaios mais refinados, mais densos. Fiquem de olho nos bons sites e nos grandes jornais nos próximos dias. Eu quero fazer outra coisa aqui.

Meu lance com a obra de Rubem Fonseca tem duas faces: a racional e a afetiva. A racional é o que vocês leram acima. Ele anteviu o ovo da serpente. Ele sabia que rolaríamos ladeira abaixo. “O cobrador” e “Feliz ano novo” sempre tiveram cara de profecia para mim. Bom, deixemos a análise literária mais fria de lado. Eu quero falar da face afetiva da obra de Rubem Fonseca.

A memória é um treco fascinante. A gente deixa passar umas coisas relevantes e segura umas coisas miúdas. Sou capaz de dizer eventos que foram muito importantes na minha vida. Vocês também conseguem fazer isso. Não sei como é com vocês, mas comigo é uma bagunça. Digo com segurança que tal coisa foi importante, mas as cenas são embaçadas. E tem situações banais que aparecem nítidas, absurdamente nítidas.

Esse mecanismo maluco fica evidente quando olho para vários livros que temos aqui em casa. Sou capaz de dizer quando eles foram comprados, onde, e o meu estado mental. Não quero bancar o exótico aqui. Estou dizendo que esse resgate do passado vem quando olho para alguns livros. Seria caso de internação se eu dissesse que acontece com todos. Ou seria caso de constatar que a minha biblioteca é mirrada.

A lembrança mais forte que eu tenho envolve os contos reunidos do Rubem Fonseca. Comprei o livro, edição caprichada da Companhia das Letras, no dia 22 de dezembro de 1997, numa livraria que não existe mais lá no Esplanada. Era fim de tarde. O shopping estava lotado. O mais incrível é que eu fui bater perna sozinho. Eu não precisava estar ali. Como a gente muda! Hoje, preciso ser dopado para encarar um shopping num fim de tarde dos dias que antecedem o Natal.

Tirei o livro com os contos do Rubem Fonseca da sacola e abri no meio. É um cacoete meu. O primeiro contato com o livro sempre se dá pelas páginas intermediárias. Não é superstição. Sei lá o que é. Com o Rubem Fonseca não seria diferente. Lembro que bati os olhos numa das páginas do conto “Intestino grosso”. Trata-se de uma narrativa em forma de entrevista. Um jornalista entrevistando um autor recluso e antipático. Numa das respostas, o escritor fala das coisas horripilantes que aparecem nos contos de fadas que lemos para as crianças. Aquelas poucas linhas me agarraram pelo pescoço. Não vi a hora de devorar todos aqueles contos.

Eles foram lidos numa espécie de estado febril. Eu andava com o livro pra cima e pra baixo. Eu soltava umas gargalhadas perturbadoras. Minha vontade era grifar tudo aquilo e deixar anotado como algo verdadeiramente precioso. Eu queria escrever que nem o Rubem Fonseca. Acho legal passar por essas empolgações. Tenho várias páginas de contos que imitam descaradamente Rubem Fonseca e Dalton Trevisan.

E se não bastasse isso tudo, eu tenho a sorte gigante de ser casado com uma fã do Rubem Fonseca. A Patrícia devorou um monte de contos dele. Ela também os considera geniais. Somos cúmplices até nas birutices. Viva o amor! E viva o Rubem Fonseca!