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O detetive

19 de Junho de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

]Toda criança passa pela fase de ser fascinada por uma ou outra profissão. Médico. Professor. Bombeiro. Jogador de futebol. Policial. Normalmente, os pais acham tudo lindo. Fazem de tudo para comprar as roupinhas e apetrechos para a pequena fera mergulhar a fundo na personagem. Ficam os registros desse período tão bacana. Fotos e vídeos que enternecem ou que rendem um sarro danado.

Apesar de adorar futebol, nunca quis ser jogador. Vai ver era o reconhecimento das limitações mais que evidentes. Quando eu era criança, havia um brinquedo que fazia muito sucesso: um kit de química. Era uma caixa que continha alguns instrumentos de laboratório. Vidrinhos de vários tamanhos e uns frasquinhos com algumas substâncias. Vinha também um livrinho com algumas explicações interessantes. Era ali que aprendíamos como fazer o famoso “sangue do diabo”, um líquido avermelhado que perdia a cor em alguns segundos. Gastei umas boas horas da minha infância bolando poções bizarras ou perfumes insuportáveis. Vocês estão pensando que eu queria ser químico. Pois erraram. Eu queria ser detetive. As experiências do laboratório rendiam ferramentas cruciais para a função.

Acho que o lance de detetive teve muito a ver com uma obra que marcou a minha vida: o glorioso “Manual do escoteiro-mirim”, da Disney. Eram vários fascículos de capa dura. Encontrávamos de tudo um pouco naqueles livros. Não é exagero dizer que a obra funcionava como um manual atenuado de sobrevivência. Aprendíamos como acampar, como nos orientar com uma bússola, e por aí vai. Em vários momentos, apareciam técnicas de como fazer algumas investigações particulares.

Aquilo me arrebatou. Rapidamente eu fiz um cata de alguns objetos que tínhamos em casa. Decidi montar uma agência de detetives em plena rua da Penha. Coisas fundamentais: um pequeno cofre cinza de metal vindo sei lá de onde; folhas e mais folhas de papel sulfite; um distintivo fajuto; uma arminha de plástico; duas máquinas de escrever. Aí era só correr pro abraço.

O clichê afirma que criança de apartamento tende a ter uma vida menos trepidante. Como se a realização plena só rolasse em latifúndios ou em chácaras bucólicas. Quem acredita nisso ignora o maravilhoso poder de fabulação de uma criança. Esse lance de adultos tentando criar o ambiente mágico para o desenvolvimento infantil sempre acaba em pastelão. Ninguém consegue reunir os elementos de um mundo perfeito. Não estou pregando aqui a indiferença. Sou contra exageros maníacos. Só isso.

Fazíamos a farra no prédio da rua da Penha. Não que fosse um lugar com muitas crianças morando. Em casa, éramos meu irmão e eu. Meu irmão é quase cinco anos mais novo. Fora nós dois, tinha o Leandro, uma figura, morando alguns andares acima. O bom é que tínhamos amizade com uma molecada que tinha avós morando no prédio. Por ser o mais velho daquela tropa, eu assumi a chefia do escritório de detetives. Eu criava missões e redigia relatórios e contratos nas máquinas de escrever. Zanzávamos pelas escadas e pelos elevadores. Promovíamos perseguições ferozes em que os detetives deveriam capturar os malfeitores. Bombas inofensivas eram colocadas nos vãos mais inacessíveis. Levávamos aquilo tudo com imensa seriedade. Criança sempre brinca assim. A brincadeira é das coisas mais sérias desta vida. Vocês sabem muito bem do que estou falando.

Uma necessária prepotência imperava. Eu julgava ser capaz de elaborar tramoias intrincadas. Os contratos e relatórios que eu redigia continham adendos e armadilhas. Resolvíamos casos com afirmações categóricas e ação enérgica. O mundo era explicado cartesianamente por nós. Não havia zonas obscuras. O casamento da lógica com a vontade era imbatível.

O fascínio pelo mundo dos detetives me tornou uma criança repleta de certezas e de saídas espertas. Envelheci, e isso foi se perdendo. Amadurecer, imagino, é reconhecer nossa impotência. É tirar o pé do acelerador quando surgem complicações. É baixar a bola. É por isso que, num mundo tomado pela pandemia, eu morro de medo de gente ignorante que sai por aí berrando suas certezas simplistas. Lembra muito quando eu tinha uns oito anos de idade. Eu achava ter a chave para todos os problemas. Repetindo, aos oito anos de idade eu era assim. Mudei. Ainda bem. Como agradeço ter vivido uma infância feliz.