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Nostalgia e veneno

11 de Setembro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Dizem que não tem como escaparmos da nostalgia. Alguns mais, outros menos: todos acreditam ter deixado o melhor de si em algum canto remoto da infância ou da adolescência. É o que dizem. Não sei se vale a pena generalizar assim.

Eu já disse aqui numa outra oportunidade: vivemos num tempo retrô. Ora, o retrô é a nostalgia comercializada. Dá para entender sobre o que estou falando com uma rápida olhada pelas vitrines de lojas de brinquedos. Produtos que tiranizavam a imaginação das crianças dos anos 80 voltaram com tudo. É meio estranho rever o Ferrorama e o Autorama. Desconfio que a ideia não é vender para as crianças de hoje. A ideia é vender para os pais das crianças de hoje.

Tento evitar que este espaço seja um tribunal de usos e costumes. De vez em quando, dou umas botinadas, reconheço. Aponto meu dedo para comportamentos que condeno. Quase sempre soa arrogante. Como se eu estivesse a salvo das besteiras da vida. Nada mais distante da verdade.

Por exemplo, alguns anos atrás a Patrícia deu um Atari para mim de presente de Natal. Quem sou eu para criticar os marmanjos que ficam babando pelos Ferroramas e Autoramas da vida? Não tenho o direito de criticar, mas posso constatar e interpretar, não?

Esses adultos alucinados por brinquedos antigos simbolizam nossos tempos. Notei que os anos 80 voltaram a ser muito apreciados. Nas redes sociais, eu me deparo com páginas dedicadas a fotos antigas, comerciais antigos e brincadeiras antigas, por exemplo. Essas páginas fazem sucesso. Milhares de pessoas participam, de alguma forma, das postagens.

Temos ao nosso redor muitos casos de nostalgia. O ponto mais importante é: como interpretar o que está acontecendo? Num momento desses, aparecem -- ainda bem -- vários pontos de vista. Tentarei simplificar. Há os que acham que as manifestações atuais de nostalgia são fogo de palha, e há os que acham que as manifestações atuais de nostalgia são a ponta de algo muito mais complexo. Eu ia escrever “ponta do iceberg”, mas achei clichê.

Não acho que elas sejam fogo de palha. Elas representam algo maior. Vou além: essa nostalgia acarreta consequências para pontos importantes da atualidade.

Começando com o que elas representam. Não é preciso ser um gênio para perceber que elas mostram que muita gente está insatisfeita com o tempo presente. Voltem comigo aos anos 50 e início dos anos 60 nos EUA. Poderia ser a mesma época no Brasil. Para fins didáticos, acho melhor olhar para os EUA. Eles glamourizavam os anos 30 ou 40 nos anos 50 e 60? Não, definitivamente não. Pensem no desenho dos Jetsons. Faz sentido. Era uma época de contentamento com o presente. Valia mais a pena pensar nas maravilhas da tecnologia. As distopias apareciam menos do que hoje.

Qual é o futuro que nós, aqui e agora, projetamos? Quase sempre na forma de pesadelo. Livros e séries mostram lugares devastados por eventos climáticos ou epidemiológicos. O presente é encarado como algo sombrio, violento, feio. Não é verdade? Façam o levantamento.

O problema de encarar o presente como uma grande porcaria é que a gente acaba jogando no lixo aspectos atuais positivos. Vai parecer um tanto bizarro o que farei aqui, mas dane-se, vocês estão acostumados.

Dias atrás, eu estava trabalhando o tema da violência doméstica com meus alunos do ensino médio. Lemos textos que mostravam muito bem as modalidades desse problema que ignora classe social. Vimos que há casos mais gritantes e que há casos mais discretos. Constatamos que o grande desafio é lidar com as manifestações menos evidentes. E constatamos, também, que as manifestações menos evidentes decorrem de estruturas culturais complexas.

Tente questionar essas estruturas culturais complexas. Tente mostrar que não somos obrigados a seguir roteiros de comportamentos escritos sabe-se lá por quem. Surgirá muita gente da minha faixa etária dizendo que tudo era muito melhor na década de 80. Que dava pra “zoar” mais na década de 80. Que não tinha tanto “mimimi” (expressão abominável). Normalmente, quem reclama assim sempre esteve na ponta mais forte do esquema.

Assim é fácil ser nostálgico