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Mundo criminoso

25 de Setembro de 2020 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Meus pais estão gostando muito de uma série policial sueca. Nos últimos dias, quando conversamos por vídeo (maldita pandemia!), eles comentam a respeito do episódio que acabaram de ver. Sempre é bom quando os interlocutores têm assuntos em comum. A série que eles estão vendo, protagonizada pelo policial Kurt Wallander e inspirada nos grandes romances de Henning Mankell, mostra o submundo das conspirações cabeludas. Sou fã de Henning Mankell. Sou fã de histórias de crimes.

É clichê afirmar que viajamos quando lemos livros ou quando assistimos a filmes ou séries. É um sábio clichê. Não sou dos mais empolgados com as viagens físicas tradicionais. Ponham na culpa da preguiça. Muitos conhecidos meus estruturam suas rotinas a partir de viagens. Nada contra, cada um com seu cada um. Não sou modelo de nada.

Ao longo desses anos todos, minhas viagens sem sair de casa foram ganhando contornos interessantes. Até pouco tempo atrás, eu encarava qualquer coisa. Uma das marcas do envelhecimento: tornar-se mais seletivo. Hoje os meus guias são figuras criminosas. Ou seja: os lugares que tenho conhecido surgem a partir das lentes do crime. Sei que o que acabei de dizer soa bastante bizarro.

Bastante bizarro e muito mais interessante. As histórias que tenho lido ultimamente mostram o que os roteiros turísticos tradicionais fazem questão de ignorar. Paisagens normalmente agradáveis aparecem sujas e tenebrosas. Seguem alguns exemplos.

Olhamos, aqui do Brasil, com admiração para a Suécia. Para muita gente, a Suécia é símbolo de um monte de coisas que deu certo. Ali a saúde funciona. Ali a educação é de primeira. Ali as pessoas borboleteiam tranquilamente pelas ruas. Não que seja mentira, mas é sempre bom conhecer um escritor como Henning Mankell. Tudo muda a partir da leitura dos seus romances. As peripécias de Kurt Wallander são repletas de complôs e de mortes violentas. Nos romances de Mankell, a Suécia é o berço de grupos perturbadores. Por exemplo, um plano para assassinar Nelson Mandela mostra que a cabana isolada numa aprazível floresta abriga figuras de pesadelo.

Ainda pensando na Suécia, outra figura de destaque é Stieg Larsson, autor da trilogia policial “Millenium”. Diferentemente de Mankell, Larsson se concentra nos, digamos, podres internos do país. As milhares de páginas da série fazem uma notável radiografia da corrupção e dos sabotadores da democracia.

Isso me faz lembrar de um outro sujeito notável: James Ellroy. Agora estamos falando dos EUA. Não da paisagem desolada dos EUA de hoje, e sim dos glamourosos anos 60. Por lá, a década de 60 foi meio maluca. Havia prosperidade. Havia otimismo com os rumos da nação. E houve os assassinatos de John Kennedy, Martin Luther King e Robert Kennedy. E houve Jimmy Hoffa. E houve a máfia tomando conta do pedaço. Pra muita gente, os anos 60 nos EUA aparecem no forma de fotografias estilosas, programas ingênuos de televisão, músicas bacanas e crianças eufóricas. Ainda bem que pessoas como James Ellroy também participam da brincadeira. Sua trilogia “USA Underworld” é implacável. Tudo nela é conspiração e sacanagem das brabas. Há, ali, mistura ótima de documento com ficção. E há a lição fundamental de que o poder é sujo. Não sejamos ingênuos.

Ainda sobre os EUA: um dos meus autores prediletos chama-se Carl Hiaasen. Seus romances são ambientados na Flórida e quase sempre trazem situações envolvendo degradação ecológica e pilantragem política. Ele mostra como ninguém como a especulação imobiliária pode ser uma praga. Todavia, mais que o assunto, o que me encanta na obra de Carl Hiaasen é a abordagem pautada no humor. É difícil pra caramba falar de um assunto sério com humor de primeira grandeza. Sempre recomendarei a leitura dos romances de Hiaasen. Quem sabe a gente para de achar que a Flórida se resume a Orlando e Miami.

Se você seguiu o meu conselho e leu as obras mencionadas nos parágrafos anteriores, fechem a jornada com Elmore Leonard. Minto: não fechem a jornada. Encarem Simenon, Ed McBain, Andrea Camilleri, James Lee Burke e companhia limitada. Nada como uma viagem feroz.