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Fases (segunda parte)

27 de Julho de 2018 às 13:13

Nelson Fonseca Neto

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Prometi, na semana passada, escrever a respeito de algumas fases da minha vida. Para quem perdeu o texto anterior, um resumo: eu havia descoberto que a idade da alma e a idade do corpo nem sempre são compatíveis. Pode ser que, com você, tudo ande perfeitamente. Comigo, não, feliz ou infelizmente. A única fase da minha vida em que corpo e alma estiveram juntos foi na infância, dos 0 aos 8 anos. Foi sobre ela que escrevi na semana passada. Depois a coisa desandou. Sem mais delongas, outras fases. Não estranhem a falta de linearidade. O que segue é refém das memórias indomáveis.

Dos 17 aos 19 anos, fui um jovem velho. Eu soube disfarçar bem. Na pior das hipóteses, eu era visto como um cara pacato. Nessa época, meus amigos e amigas viviam inventando idas à praia. Estou muito longe de me julgar um aristocrata. Sou um cara dos mais maleáveis. Tenho pavor de papo de gourmet ou barista. Só compro roupa quando a Patrícia encosta um rifle na minha têmpora. Por outro lado, prezo alguns confortos fundamentais. Na verdade, prezo o bom senso. Sempre prezei. E a coisa não entrou em curto-circuito na juventude.

Praia sempre foi algo problemático para mim. Quando digo que não sou fã, parece que cometo sacrilégio. Sou avesso ao calor, à areia, ao mormaço. É a minha natureza, e nada posso contra ela. Mas como eu disse um pouco acima, eu soube disfarçar bem. Se abrisse mão de todos os convites para ir à praia, eu seria um excluído. E ser excluído aos 18 anos é osso duro de roer. Então, com o coração despedaçado, eu aceitava o convite.

Se tudo seguisse os ditames do bom senso, o passeio aconteceria numa data civilizada. A saída também seria num horário civilizado. E não numa sexta-feira de Carnaval, às 13h. Eu até que tentava ser o grilo falante da juventude sorocabana. Eu dizia que daria para ir à praia sem recorrer a rituais masoquistas. Precisa demorar doze horas num trajeto que demoraria duas horas e meia? Precisa ser numa época em que a escassez de água seria uma certeza? O coro respondia que não seria do jeito trágico que eu estava prevendo. Eu respirava fundo e topava subir na barca furada. Meus prognósticos estavam corretos? Estavam.

O pacote masoquista praieiro incluía viagem sofrida, cheiro de esgoto na areia, baratas gigantescas desfilando gostosamente pelas calçadas, um ou outro rato anabolizado dando o ar da graça e, claro, o apartamento minúsculo e incompatível com as palavras empolgadas da simpática proprietária que morava em Sorocaba. Nunca duvidei de que a propaganda é a alma do negócio, mas não precisamos avacalhar. A simpática proprietária, quando alguém da turma respondia ao anúncio, dizia que o apartamento era grande, que cabia muita gente, que o chuveiro funcionava bem, que tinha piscina no terraço, que o porteiro era super gente boa, e que, o melhor de tudo, ficava quase de frente pra praia. Naquela época não tinha internet, e essas transações eram feitas a partir da boa e velha confiança.

Quando chegávamos, o porteiro não abria o portão da garagem e grunhia algo misterioso e assustador. O apartamento era uma caixa de fósforos. O funcionamento do chuveiro fazia com que o banho de caneca fosse mais vantajoso. A água que saia da torneira era amarela e viscosa. Tínhamos medo de ver um cadáver boiando na piscina do terraço. Quanto ao apartamento ficar quase de frente pra praia: era quase de frente mesmo, se "quase de frente" significar cinco quilômetros de distância, ficando à beira da sinistra rodovia e bem perto da linha de trem. Rodovias e linhas de trem sempre compuseram o cenário de filmes de terror em que adolescentes são trucidados por um maníaco empunhando o machado.

Um banheiro para seis ou sete pessoas. A galera abusando da pizza de alho. A luta renhida por uma privada. Todos besuntados de protetor solar rumo à praia. Não entrarei nos detalhes da praia lotada. Depois de algumas horas, salsicha com macarrão no almoço e a disputa pela louça a ser lavada. À noite, gente bêbada brigando e cantando música ruim. Eu aguentei tudo isso porque sempre tive um pé no estoicismo. Ou no masoquismo.

Semana que vem, falaremos de outras fases. Até lá.