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Fases (primeira parte)

20 de Julho de 2018 às 11:50

Nelson Fonseca Neto

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Recentemente fiz uma descoberta que julgo ser revolucionária: nem sempre a idade do corpo é compatível com a idade da alma. Eu bem que gostaria de dizer aqui que eu costumo seguir um ritual propício a grandes reflexões e descobertas. Mas não foi assim que aconteceu. A iluminação veio enquanto eu esperava o semáforo abrir, no centro da cidade, num dia útil prosaico. O rádio do carro transmitia um programa supostamente humorístico. Os apresentadores do programa liam algumas mensagens enviadas pelos ouvintes. Todas as mensagens eram de empolgação. A se basear por elas, o programa era o mais engraçado do planeta. Fiquei triste. Como se apenas eu fosse incapaz de rir. O que fiz da minha vida ao chegar aos quarenta anos?

Mas a tristeza durou pouco. Veio a arrogância: eu estou certo, e esse programa é uma porcaria mesmo. Azar de quem gosta dessas coisas. Como um pêndulo maluco, a tristeza deu lugar a um menosprezo anárquico. Essa sociedade imbecil não presta! Estamos caminhando a passos largos para o precipício! A arrogância também durou pouco. No fim, venceu o equilíbrio, a serenidade: eu não dou risada fácil porque a minha alma é de velhinho. É difícil ver um velhinho rindo de qualquer coisa.

E assim a coisa foi se desdobrando para a tal descoberta revolucionária que eu mencionei no primeiro parágrafo. Antes de ela surgir, eu precisei exercitar a memória. Revi situações nas quais a incompatibilidade entre alma e corpo ficou evidente. Dividi a minha vida em fases, e os resultados foram dos mais interessantes. Quero mostrar a vocês alguns exemplos, não me prendendo a qualquer rigor cronológico.

Dos 0 aos 8 anos eu fui uma criança com alma ajustada ao corpo. Dava chilique na farmácia porque a minha mãe não achava uma boa ideia comprar para um pirralho saudável um remédio para o fígado. Eu, que desde novo era um chumbo, gostava de me jogar nas calçadas, bancando o pequeno protagonista de ópera. Eu adorava brinquedos, e tinha um monte deles. Meu irmão e eu espalhávamos bonequinhos dos Comandos em Ação pelo apartamento todo. Pegávamos potes vazios de sorvetes, colocávamos os bonequinhos ali, enchíamos tudo com água e púnhamos no congelador. Depois de um tempo, os hominhos estavam presos no gelo. Nosso prazer era resgatá-los. Meus pais sempre foram -- ainda são -- de uma paciência divina, e nunca podaram nossas brincadeiras. O nome disso é infância bem resolvida. Esses hominhos dos Comandos em Ação também eram fonte de sustos. Por exemplo, quando eu ia tomar banho, levava vários deles ao chuveiro. E lá eu ficava um tempão inventando enredos e colocando os pobres coitados em situações de riscos aquáticos. Eu tinha a mania de trancar a porta do banheiro, e quando a coisa extrapolava os limites, minha mãe me chamava. Eu não ouvia, tamanha a minha concentração com a brincadeira. Minha mãe sempre foi craque na arte de notar os detalhes, e por isso ela marcou para mim uma consulta com um otorrino. Ela queria saber ser eu era uma criança que estava desenvolvendo algum grau de surdez. Deu tudo certo no exame. Era apenas safadeza da minha parte. Coisa feia de se dizer, mas é verdade. Nessa fase da minha vida, adorávamos futebol, e meus pais sempre compravam uma bola oficial de algum campeonato, com o couro brilhando, algo a ser guardado num cofre. Mas o que fazíamos, principalmente eu, já que o meu irmão ainda era muito pequenininho e apenas seguia o que o mocorongo do irmão mais velho fazia? Estreávamos a bola novinha numa quadra de cimento que era áspera pra caramba. Ainda sobre essa fase, quando corpo e alma caminhavam juntos: qualquer derrota no Atari era acompanhada de bufos, lágrimas e vontade de arremessar o controle na parede. Convenhamos: meus pais merecem ou não o Nobel da Paz? Eu sou suspeito para responder, mas vamos lá: claro que merecem.

E assim eu percebo que a fase dos 0 aos 8 anos foi a única fase de harmonia entre corpo e alma. Depois a coisa desandou, e as fases seguintes apresentam um sujeito meio estranho, ora jovem com alma de velho, ora maduro com alma de jovem, ora maduro com alma de maduro. Enfim, um rolo danado. Na próxima semana, trataremos dessas outras fases. Até lá.