Fabular
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
O conto é um negócio sério. Não há espaço para erro. O leitor tem de ser capturado logo nas primeiras linhas. A tensão é permanente. Não é o caso de afirmar que o conto é superior ao romance. Um e outro apresentam engrenagens diferentes. Nas horas vagas, imagino situações que poderiam render uma narrativa breve ou uma narrativa de maior fôlego. Talvez saiam desses esforços um livrinho ou um livrão. Não agora.
Agora estamos na fase dos bastidores. A escrita criteriosa requer planejamento. São muito interessantes os diários dos escritores. É ali que tomamos contato com a cozinha da criação. É ali que nos deparamos com a sujeira, com as tentativas fracassadas, com a angústia, com as idas e vindas, com o muro ao final da curva.
Há escritores desorganizados e há os que anotam tudo com rigor. Cursos de escrita criativa mostram que o planejamento é crucial. O escritor, depois da faísca inicial, deve ser um detalhista. Há quem siga essas lições até as últimas consequências. As páginas dos diários desses autores revelam diagramas complexos e listas exaustivas. São exemplos de estudos da realidade. O interessante é que, quase sempre, centenas de páginas de bastidores rendem uma ou duas linhas da versão final do texto.
Sempre dei mais atenção ao processo de criação das personagens. É a etapa mais complexa. Sempre é importante dizer que cada escritor recorre ao modo que se encaixa melhor ao seu temperamento na hora da criação literária. Tem gente que começa a delinear o ambiente. E tem gente que põe a história para rodar somente depois que as personagens estão devidamente esquadrinhadas.
O “devidamente esquadrinhadas” também varia bastante. Sei de escritores que fazem árvores genealógicas detalhadíssimas de suas personagens. Esses escritores são capazes de dar detalhes da infância de uma personagem, mesmo que isso não apareça diretamente na história. E não importa que isso não apareça. Há, aqui, a crença de que tudo fique mais convincente quando devidamente estruturado. Balzac foi um belo exemplo dessa linhagem.
A criação de personagens, para além do detalhismo, pode esbarrar em limites éticos. Nunca se cria a partir do nada. Tudo o que o leitor encontra no papel tem a ver com a vivência de quem o escreve. Há quem prefira dar um retoque aqui e outro ali numa figura da vida real e transformá-la em personagem. Esse procedimento é a delícia dos que acreditam que a biografia do escritor é fundamental para a verdadeira compreensão da obra. É um processo contínuo de ligar os pontos. O problema é que tem gente que não fica muito satisfeita ao se ver num livro.
Mas nem sempre as coisas se dão de forma tão óbvia assim. Muitos escritores gostam de esconder as pegadas. Convivem com as pessoas e vão pegando uma coisa aqui e outra ali de cada uma. É um processo lúdico de combinação. Os encaixes são tentados e a brincadeira não tem fim. Sim, brincadeira. Brincadeira séria, claro. Nunca percam de vista que narrar é algo que prezamos desde crianças. As crianças criam histórias o tempo todo.
Pena que isso se perca com o passar dos anos. Crianças criativas acabam se tornando adultos que se orgulham de ter os pés bem fincados no chão da realidade e da responsabilidade. Poderíamos dizer a mesma coisa em relação à ciência. Crianças maravilhosamente curiosas acabam se tornando adolescentes que têm pavor de física e química. Todavia, no que diz respeito às narrativas, a diferença entre a criança e o adulto é que a primeira não tem vergonha das histórias e que o segundo engana mal e porcamente. O adulto sisudo e pilar da sociedade é um grande consumidor de enredos. Basta ver a força das histórias que nos rodeiam: literatura, cinema, novelas, séries, musicais, óperas.
Mas a coisa vai além. O adulto sério também é um criador de enredos. Não é necessário ir muito longe para fazer a constatação. Basta gastar alguns minutos nas redes sociais ou conversar um pouco com alguém. Somos criadores compulsivos de enredos que dão sentido a nossas vidas. A conversa com alguém que finalmente conseguiu um emprego depois de meses ou anos de sofrimento é a narrativa do protagonista que soube superar todos os pratos amargos que a vida pode servir. Interessante, não?
Semana que vem voltamos ao assunto.