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Espanto

27 de Setembro de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

O espanto pode ser visto como algo positivo ou negativo. A gente se espanta menos conforme o tempo vai passando. Tem gente que lamenta essa espécie de perda de frescor. Tem gente que se orgulha disso. É o famoso: “eu já sabia”.

Não é preciso ser muito esperto para saber que a criança é riquíssima em espantos. Temos a sorte de ver isso diariamente em casa. Tudo é novidade e festa para o João Pedro. Ele está na fase de experimentar comidinhas. Nessas horas, a cara que ele faz é o máximo. É preciso deixar registrado aqui que ele é bom de colher. Eu sempre achei meio melosa essa história de pais, avós e tios acharem o máximo quando o bebê come bem. Sei lá, eu achava que era um exagero. Não acho mais. É uma delícia ver o pratinho raspado.

(Daria para escrever um livro sobre os espantos do João Pedro. Aos poucos, vou soltando um ou outro aqui. A coisa rola em todos os departamentos da vida do jovem cidadão.)

Quem trabalha com educação tem sempre em mente esse lance do espanto. Vira e mexe, isso aparece nas conversas. Na maioria das vezes, o tom é de frustração. É o seguinte: como uma criança observadora e deslumbrada com as menores coisas torna-se um adolescente que não tem a mínima vontade de olhar para a cidade que passa pela janela do carro? A resposta seria longa e trágica. O que nós, os adultos, fazemos com as crianças precisa ser reavaliado. Não dá para encarar a coisa como um fenômeno da natureza. Melhor parar por aqui. Não tenho espaço para destrinchar um assunto tão difícil e polêmico.

A questão dos espantos não é matemática. É possível encontrar um sujeito de idade avançada que ainda leva os seus sustos bons ou ruins. Não quero soar como piegas aqui, mas não tem jeito: a pessoa que mantém um frescor desses na vida adulta é uma iluminada. Eu tenho a sorte de conhecer gente assim. O nascimento do João Pedro mostrou que as pessoas mais próximas têm a chama da alegria bem acesa. A gente não precisa pedir muito mais da vida.

Você acompanha esta coluna ao longo dos últimos nove anos e sabe que eu não resisto à tentação de falar do que acontece comigo. Crônica é assim mesmo. Sou repleto de espantos? Os espantos secaram? Minha resposta pouco esclarecedora: depende.

Tem a ver com ruindade e bondade. A vivência na literatura me fez acreditar na relativização das coisas. Sempre há vários pontos de vista numa determinada situação. A gente se delicia com a voz do Bentinho, mas sabe, ao mesmo tempo, que tudo ali, no “Dom Casmurro”, é distorcido. A gente passa a vida lendo os grandes da literatura e não tem como passar incólume a isso. É natural aplicar a bagagem da leitura no jogo jogado que é a vida. Isso não me faz melhor. É apenas uma constatação. Resumindo, já que eu adicionei algumas curvas a um pensamento que deveria ser reto: boa parte das minhas avaliações tenta levar em conta o matiz, a sutileza, a visão alternativa. Apesar disso, não abro mão da convicção de que existe o bem e o mal. A gente tenta entender algumas ações, e até acaba entendendo, mesmo não concordando com elas. E tem coisa que a gente não entende e nunca conseguirá entender. Os jornais, a internet e a televisão mostram diariamente situações que comprovam a existência do mal. Certamente você sabe do que estou falando. Não quero dar exemplos e sujar este meu humilde texto.

A maldade não me espanta. Eu fico enojado com ela. Sou tomado por pensamentos sombrios quando me deparo com ela. A vida perde a cor diante de algumas notícias. É difícil retomar o prumo. Mas a maldade não me espanta. A gente sabe que ela está logo ali.

O que me espanta -- e comove -- é a bondade. Não estou falando dos grandes atos. Penso na bondade miúda, humilde, de voz baixa. Na bondade que não quer se promover. Na bondade que fica acanhada quando, por uma razão ou outra, ganha publicidade. Deparar com uma coisa dessas sempre é um susto bom. Agora você entende o “depende” da minha resposta.

É claro que o tagarela aqui tem que finalizar com a menção a uma leitura recente. Tem a ver com espanto, lógico. Não é sempre que acontece. “O furgão”, de Roddy Doyle, é, desculpe a minha falta de criatividade, um livro espantoso. Não é pouca coisa escrever um romance brilhante a partir da saga de um furgão onde se vende sanduíche e batata frita. Espero que você possa desfrutar da sua merecida cota de espanto.

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