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Entrevista imaginária (primeira parte)

19 de Julho de 2019 às 00:01

Coluna Letra Viva, de Nelson Fonseca Neto Crédito da foto: Pxhere

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Nelson Fonseca Neto, 41 anos, nos recebeu em seu apartamento. O bebê João Pedro e a Patrícia foram passear. Nelson é professor e cronista. Precisamos deixar registrado que ele não é dos entrevistados mais dóceis. É para se pensar se ele não transformou de propósito a entrevista numa grande palhaçada. Cabe ao leitor decifrar o enigma.

Podemos notar que o seu apartamento é repleto de livros. A pergunta que temos a obrigação de fazer: você já leu todos eles?

Eu ficaria rico se recebesse um real a cada vez que ouvi essa pergunta. Acho que evoluí. Antigamente eu deixava a pessoa falando sozinha. Agora eu respiro fundo e digo: não. Não quero ser muito detalhista e explicar o motivo pelo qual não li todos os livros que estão aqui. Para não soar grosseiro, vou usar uma comparação meio besta. Você vai ao supermercado diariamente e compra apenas o necessário para o almoço/jantar do dia? Ninguém faz isso. Por que eu agiria assim com os livros?

Mas você conseguiria dar uma estimativa de quantos livros daqui você já leu?

Eu detesto a exatidão. Eu diria que li 92% do que você está vendo.

Você tem algum livro favorito?

Quem não tem? O duro é que o meu gosto muda o tempo inteiro. Hoje eu gosto de romances policiais. Antes eu achava que eles eram repletos de besteiras. Eu era muito burro. Eu valorizava os livros considerados “sérios”. Fora deles eu não via vida. Hoje eu sou viciado em literatura engraçada: Mario Levrero, Kurt Vonnegut, Gary Shteyngart, Thomas Pynchon e Dostoiévski.

Nunca ouvi falar dos quatro primeiros. Mas não é forçar a barra achar Dostoiévski engraçado?

Você já leu o início de “Os irmãos Karamázov”? Já leu “O jogador”? Aquilo é humor de primeira grandeza. E as trinta primeiras páginas de “Os demônios”?

Lendo seus artigos, percebemos que você sempre menciona o nome de Tolstói. Tem uma explicação para isso?

Eu não fui pago pela embaixada russa para divulgar as letras do país. Eu sempre cito porque acho que o Tolstói é o maior de todos. É só por isso.

Cercado de tantos livros, você deve detestar o lixo cultural que aparece na televisão e na internet.

Muito pelo contrário. Vejo bastante televisão. Acho divertido. E eu não posso me esquecer de que passei a infância nos anos 80. Víamos muita televisão. Até hoje entro no Youtube para ver alguns programas antigos. São uma delícia. Mas também a gente pode colocar essa minha opinião na conta da nostalgia, e a nostalgia é uma excelente embelezadora. Sei lá. Também não acho a internet um horror. Vou confessar um vício: eu sempre leio os comentários das notícias que aparecem no Facebook. Às vezes é comovente. Às vezes é tenebroso. Não deixa de ser uma terapia. Sempre é bom saber que tem gente mais imbecil que você circulando por aí. Outra coisa: a expressão “lixo cultural” é das mais problemáticas. Mas não quero esmiuçar essa questão. É só parar um pouco pra pensar.

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Você sempre fala e escreve a respeito de livros. Pretende algum dia publicar algo?

Sinceramente, eu pensava mais nisso antes. Quando eu tinha uns vinte e pouquinhos, escrevi uns contos. Saíram ruins. Foram engavetados. Depois passou a vontade de publicar. Acho que tem a ver com a experiência que tive trabalhando numa grande editora em São Paulo. Foi uma ótima experiência. Conheci gente muito bacana. Editei ótimos livros. Mas o mais importante de tudo foi que aqueles anos desglamourizaram a literatura. Hoje eu estou feliz em ser apenas um leitor. E as crônicas pro jornal ajudam a matar a fome de ser escritor.

(Continua na próxima semana.)