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Dois bebês (primeira parte)

01 de Novembro de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

João A. nasceu no dia primeiro de janeiro de 2020. Ele foi ansiosamente aguardado pelos pais e por toda família. Seu quarto estava pronto há dois meses. Berção e bercinho. Papel de parede em cores delicadas. Abajurzinho para criar uma atmosfera aconchegante. Poltrona confortável para a mãe amamentar em paz.

João B. nasceu no dia primeiro de janeiro de 2020. Ele não foi ansiosamente aguardado pelos pais e por toda família. O pai desapareceu assim que soube da gravidez. Não havia família por perto. O pessoal morava longe, muito longe. Não havia quarto para João B. Não havia nem berção nem bercinho. Havia um colchão detonado que ficaria ao lado da cama da mãe. A mãe de João B. nunca tinha sentado numa poltrona. Não havia papel de parede em cores delicadas porque a parede era de tijolo, sem qualquer tipo de pintura ou massa corrida.

João A. nasceu numa maternidade que ficava numa cidade de interior. A cidade havia crescido bastante nas últimas décadas. Estava longe de ser uma cidade pequena. Sua população chegava a quase um milhão de habitantes. A maternidade onde João A. nasceu atendia pelo SUS e também atendia por convênios particulares.

Havia o andar que abrigava os quartos do SUS e havia o andar que abrigava os quartos dos convênios. Os quartos do SUS ficavam no primeiro andar. Os quartos dos convênios, no terceiro andar. A maternidade ficava numa avenida movimentada da cidade. Os barulhos de motos, ônibus e carros não davam trégua nem de madrugada. Fazia calor no dia primeiro de janeiro de 2020.

João A. e João B. vieram ao mundo pelas vias da cesárea. Foram bem tratados nas primeiras horas de vida. João A. teve bom índice na escala de Apgar. João B., nem tanto. Em situações assim, os estudos médicos levantam uma série de hipóteses para explicar a disparidade.

Na maternidade, a porta do quarto de João A. apresentava uns bichinhos fofos de pelúcia pendurados. O nome do bebê formava um arco divertido acima dos bichinhos. Familiares do pai e da mãe de João A. bagunçaram o esquema que controla o número de visitantes. O quarto de João A. era uma festa. Os pais de João A. estavam esgotados. Mas era um esgotamento feliz.

Na maternidade, a porta do quarto de João B. não apresentava bichinhos fofos de pelúcia pendurados. O nome do bebê não formava arco algum. Não houve tempo nem energia para se pensar nessas coisas. Não houve família para tumultuar o esquema que controla o número de visitantes. Ninguém veio ver João B. A mãe de João B. estava esgotada. Não era um esgotamento feliz.

Por terem passado pelo processo da cesárea, as mães de João A. e João B. tiveram de ficar três dias na maternidade. As duas tiveram as clássicas dores e as clássicas náuseas. Sempre tinha um parente no quarto da mãe de João A. para o que desse e viesse. A mãe de João B. tinha de contar com o auxílio esporádico da enfermagem. As enfermeiras faziam o que podiam. O corredor do SUS estava lotado naquela semana. As demandas não tinham fim.

As mães de João A. e de João B. não tinham tanto leite assim. Entraram em parafuso. Os bebês tiveram sua alimentação complementada por doses de Nan. O pediatra que acompanhava os dois bebês disse que, se o leite materno não viesse, o Nan teria de ser ministrado assim e assim. A mãe de João A. ficou frustrada com a perspectiva. Mas passou. Ela tratou de anotar as especificações do médico. A mãe de João B. entrou em pânico. Uma lata de Nan custava os olhos da cara.

João A. e João B. tiveram alta no mesmo dia. Diríamos que praticamente na mesma hora. Havia um carro esperando João A., com cadeirinha e tudo no banco de trás. João A. foi conduzido até lá num carrinho estiloso. Havia um batalhão de parentes para conduzir o processo.

Não havia carro esperando João B. Seria besteira falar em cadeirinha. Seria um insulto tocar no assunto do carrinho estiloso. Claro que não havia parentes para conduzir um processo inexistente. João B. e sua mãe foram embora de ônibus mesmo.

(Continua na próxima semana)