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Descendo a ladeira

19 de Março de 2021 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Acho que foi no começo do ano passado. Por onde eu andava havia duplas ou trios dançando diante da câmera do telefone celular. Os passos da dança eram parecidos. Não consegui descobrir se era a mesma música. Provavelmente era.

Certamente você vai dizer que eram duplas ou trios de adolescentes. Na maior parte das vezes, eram mesmo. Mas tinha muito marmanjo e muita marmanja na jogada também. Nunca cansarei de dizer: é covardia jogar tudo nas costas dos adolescentes.

Mas o que eu queria dizer é o seguinte: as dupla e trios que vi no ano passado serviram de gatilho para uns pensamentos que, vira e mexe, voltam até hoje. No fundo, eles são simples. Resumindo: como transformamos maravilhas tecnológicas em bobagens? Poderíamos fazer uma suculenta lista de exemplos aqui. Um dos mais marcantes é o automóvel. De vez em quando, ao entrar no meu carro, fico olhando maravilhado para o painel. Tento traçar a rota científica que desembocou naqueles números fosforescentes. É vertiginoso. (Claro que não dá para ser contemplativo o tempo todo. Só de vez em quando olho para o painel do carro. A vida seria irritantemente morosa.)

Tudo desaba se preciso ir a São Paulo no início da manhã. Aquela região perto de Alphaville arrebenta qualquer um. Somente os iluminados e as iluminadas conseguem ser alegrinhos diante de um cenário em que os carros se arrastam. Sem contar as motos tirando fina do retrovisor. Muitos de vocês conhecem o drama.

Em Alphaville, viro um defensor da vida nos bosques. Passo a desejar o fim do automóvel e de todos os cacarecos do mundo contemporâneo. Depois passa. Sou volúvel.

Nem preciso dizer com riqueza de detalhes que a culpa não é do automóvel em si. A culpa é do que fazemos com ele. Dá pra dizer, sem medo de errar, que muitas das maravilhas tecnológicas operam dessa maneira. Carregam consigo coisas sensacionais e coisas horrorosas.

Um outro bom exemplo é o do telefone celular. Tem dia que eu fico olhando pra ele com ares de bestificado. Como no caso do automóvel, passa logo. Vou dizer aqui uma coisa que soará como bizarra para muitos: nossa vida ficou pior quando alguém acoplou a câmera de fotografia e de vídeo ao telefone celular.

Tento recriar o momento em que alguém pensou: “opa, vou colocar uma câmera neste telefone”. Certamente quem teve a ideia viveu horas de êxtase. Para mim, o mundo seria melhor se o telefone funcionasse bem e pudesse mandar mensagens de texto. Só de texto. Já seria algo grandioso.

Neste momento, você dirá que a câmera aproximou pessoas. Se disser, não está errado. Uma boa câmera e uma boa conexão de internet permitem que um sujeito converse com outro a milhares de quilômetros de distância. Isso ajuda muita gente. Isso pode ser comovente, claro. Mas aí o meu lado sombrio entra em cena.

Sem a câmera não teríamos: as selfies; as fotos nos restaurantes; os vídeos do carinha virando um balde com água na cabeça do amigo que está dormindo; o tipinho que fala asneiras em seu canal no YouTube; o intelectual fazendo comentários sobre o livro que está lendo (antes que vocês atirem as pedras, digo que já fiz isso; não sou o dono da verdade e não sou intelectual); a pessoa fazendo tutorial de maquiagem; o professor dando dicas pilhadas de como tirar nota 1000 no Enem.

E não teríamos o fortalecimento da convicção de que somos bonitos, formosos e interessantes. Não somos. Não teríamos redes sociais servindo de palanquinho fuleiro. Nossas viagens não seriam glamourosas. Quando muito, ficariam registradas no álbum que repousa naquela gaveta pesadona. Seríamos menos performáticos, menos hiperbólicos. Não nos consideraríamos celebridades. Um mundo mais lento? Mais cinzento? Menos barulhento? Com muito menos auê?

Seria ótimo. Pena que não tem volta.