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Deixando as firulas pelo caminho

02 de Agosto de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Uma certeza: este texto soará antipático. Pensei bastante antes de escrevê-lo. Seria mais conveniente tratar de algo inofensivo, engraçadinho. Acho que eu agiria assim alguns anos atrás.

O bom de envelhecer é que a gente vai deixando algumas firulas de lado. Favor não confundir com apologia a comportamentos grosseiros. Quando alguém me irrita no trânsito, não berro loucamente. No elevador, apesar do desconforto, respondo a perguntas, cumprimento com um sorriso. E por aí vai.

O deixar algumas firulas de lado é um movimento mais complexo. Tentarei explicar. Muitos anos atrás, se eu resolvesse encarar um livro, iria até o final. Por mais aborrecida que fosse a leitura, eu não desistia. Quando eu era bem mais jovem, isso aconteceu várias vezes. Hoje, com quase 42, juro que não sei explicar aquela cota de masoquismo. Hoje, com quase 42, sou bem mais arisco. Não insisto no aborrecimento. Algumas páginas bastam para eu saber se terei prazer ou sofrimento.

Acho que não estou sendo claro. Quando uso “prazer” e “sofrimento”, não emito um julgamento infalível. Tudo depende do momento de quem lê. Acho que vocês já passaram por isso. O livro bacana de hoje pode ser o porre de amanhã. E vice-versa. Comigo, dois escritores ilustram bem o processo.

Ninguém é besta de dizer que Poe e Dostoiévski são escritores menores. Não é necessário explicar o peso deles em seus respectivos países. Poe é craque do conto. Dostoiévski é craque do romance. Nunca perdi isso de vista. No começo dos anos 2000, só faltava ter um altarzinho do Poe no meu quarto. Eu achava que a perfeição estava em seus textos curtos. Tudo empalidecia diante deles. Mas o jogo virou. Hoje eu acho difícil ler três ou quatro páginas dele. Culpa de quem? Minha. Pode ser que daqui alguns anos a paixão volte.

Com Dostoiévski o caminho foi inverso. Na primeira vez, penei muito para vencer seus principais romances. Não desisti. Foram semanas áridas. Eu devia ter quase vinte anos. Lembro de ter lido várias páginas de “Crime e castigo” na bicicleta ergométrica da academia. Ou seja: tudo conspirando para a catástrofe. Eu era meio tonto. Claro que rolava um exibicionismo naquilo tudo.

Anos depois, fui reler a obra de Dostoiévski. O que era aborrecimento se transformou em encanto. “Crime e castigo” virou uma belezura. Hoje, estou convicto de que Dostoiévski é a chave para se entender o que o ser humano tem de pior e de melhor. Irei assim até o fim? Sei lá. Pode ser que daqui alguns anos eu me arrependa destas linhas enaltecedoras.

Acho que isso é deixar de lado algumas firulas. Agir assim é reconhecer o que me convém, independentemente do que as pessoas dirão. Não é fácil assumir que alguns gigantes da literatura podem não ser uma boa pedida para um dado momento. É preciso descartar sentimentos de culpa que só emperram a vida da gente.

Eu poderia fazer uma listona de firulas que a gente vai deixando pelo caminho. Certamente a minha não coincide com a sua. Cada um sabe onde o sapato aperta. Tenho pavor de lojas que transformam o ato de vender numa “experiência”. Não quero beber uma cerveja artesanal enquanto cortam o meu cabelo. Não quero me enfronhar na metafísica dos seguros de vida. Só vejo vídeos que incentivam investimentos na bolsa de valores para dar risada. O meu preferido mostra um rapaz hipster explicando que comprar ações num determinado aplicativo é mais rápido que estourar pipoca. A criatividade dessa gente não conhece limites. Essas coisas nunca acabam bem. Joseph Kennedy, pai do John Kennedy, já dizia isso nos anos 20.

Firulas, firulas. Você passa a se contentar com coisas menores. Não quer conhecer o barzinho bacanérrimo. Passa longe do show do artista que manda bem pra caramba. Não vai à palestra do cara polêmico que arrebenta no Facebook. Sonha com a volta das livrarias que vendiam apenas livros, vejam só! Fica comovido com uma tradução caprichada direta do russo e acha que uma coisa dessas, sim, muda o mundo.