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Carta para Lima Barreto

06 de Julho de 2018 às 16:53

Nelson Fonseca Neto

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Caro Lima Barreto: boa parte desta carta será de tietagem. Espero que você perdoe. Sei que você não gosta de derramamentos emocionais. Seu negócio sempre foi a fúria, a boa fúria. E é por isso que você é um dos nossos grandes escritores.

Escrever para você traz à tona boas recordações. Um dos meus primeiros deslumbramentos literários foi "Triste fim de Policarpo Quaresma". Eu tinha dezessete anos e pouca rodagem no mundo dos livros. Ler as desventuras do pobre Quaresma me deixou acordado naquela madrugada remota. Pudera: eu nunca tinha encarado um livro que me fizesse gargalhar (na primeira parte) e chorar (nas páginas finais). O triste Brasil está esquadrinhado naquelas páginas. Tudo que temos de pior está ali. É de uma atualidade absurda. Sempre digo isso aos meus alunos.

Passado o deslumbramento inicial, fui em busca de outras obras que você escreveu. Li os outros romances, li os contos, li as crônicas, li as memórias. A paixão não esfriou. Muito pelo contrário. E isso é raro, muito raro. São coisas da vida: muitas vezes, a decepção é proporcional à empolgação. Quantos relacionamentos não começam fervendo e terminam gelados? É assim na vida, e é assim na literatura. Estou com quarenta anos, e já perdi a conta dos escritores que, anos atrás, eu considerei grandes e que são, hoje, minúsculos. Não citarei nomes. Não quero ser desagradável. Você continua firme e forte. Você, o Machado de Assis e o Nelson Rodrigues, por exemplo.

Você é exigente e talvez queira que eu explique melhor a minha devoção. Impossível fazer uma coisa dessas no espaço reduzido desta carta. Eu me sairia melhor num texto bem mais longo. Quer dizer, não sei. Eu teria medo de escrever algo frio, e acho que você não merece ser aporrinhado. Mas, se você permitir, tentarei falar um pouco, sem jargões acadêmicos, dos motivos do meu imenso respeito por você.

Em primeiro lugar, vem a qualidade literária dos seus textos, independentemente das circunstâncias em que eles foram escritos. Seus contos, crônicas e romances, mesmo que não soubéssemos nada de quem os escreveu, seriam brilhantes. O estilo afiado, o senso de observação e a fantasia exacerbada sempre deram bons frutos.

Em segundo lugar, vem a fúria que é o combustível da sua obra. Para muita gente, literatura é sinônimo de texto comportado, bonitinho, agradável. Como diriam em sua época, um refrigério para as agruras do cotidiano. E já que estamos falando da sua época, convenhamos: você era um estranho no ninho. Muitos de seus colegas eram tietados por conta, justamente, do estilo nobre, das imagens celestiais, da elegância intransponível. Enquanto isso, no começo do século 20, a cuíca estava roncando forte no Brasil. Enquanto isso, no começo do século 20, ser escritor era bebericar um belo chá e declamar nas festinhas. É uma praga do Brasil: basta enrolar umas frases com algumas palavras raras, e o sujeito é rotulado como o gênio da raça. Peço perdão pela comparação bizarra: enquanto muitos só tocavam valsas comportadas, você trouxe o punk para a nossa vida. Você não deixou passar nada batido. Ler seus textos é reconhecer o lado assustador, triste, canalha, corrupto, burro, assassino do Brasil. Ninguém escreve essas coisas impunemente. Sua vida, que foi um enredo de filme de terror, é a prova cabal.

De tudo o que aconteceu na sua vida, eu faria apenas uma ressalva. Você não deveria ter azucrinado o Machado de Assis. Você vai responder que, em 2018, é fácil falar assim. Juro que entendo. Mas é chegada a hora da reconciliação. Você e o Machado são o que temos de melhor. É triste ver gente boa brigando. Tente entender: o Machado de Assis tinha um jeito diferente de bater. Ele não era direto. (Se bem que o conto "Pai contra mãe", um dos mais horripilantes da literatura brasileira, revela muita coisa.) Ele não era de sair chutando tudo. Ele era, aparentemente, bem entrosado na sociedade. O que eu peço é simples: tente raspar o verniz dos textos dele; você encontrará a dureza de como ele olhava para o nosso país.

Seria tão bom se vocês fizessem as pazes. Seria melhor ainda se vocês estivessem entre nós. Posso garantir: material não faltaria para os livros.