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Carta ao apaixonado por livros

17 de Maio de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Não quero que esta carta seja antipática. Você é um apaixonado por livros. Sempre que possível, deixa isso bem claro. Muitas pessoas olham com respeito para você. Suas palavras têm autoridade. Em tese, eu não deveria dirigir qualquer crítica a você.

Tentarei ser delicado. Não faço isso por ter medo. Já escrevi cartas mais duras a pessoas que merecem reprovação. Agora mesmo, o sentimento de culpa é inevitável. Tanta gente sacaneando os outros por aí, e eu resolvo encrencar com um cara apaixonado por livros?

Entenda: tem a ver com a minha fase atual. Perdi a paciência. Perdi o ímpeto reformista. Estamos no Brasil, em 2019. Você sabe do que estou falando. Impossível lidar com fanáticos. Talvez um dia eu mude. Tomara que isso ocorra.

Recorro, então, aos que eu ainda vejo como abertos a uma conversa. Assim, espero deixar claro meu respeito por você.

Chegamos a este ponto da carta, e você talvez queira saber quais são as críticas que tenho a fazer. Não encare como críticas; encare como sugestões. Sei lá, uma espécie de aperto de um parafuso aqui e outro ali.

Você sempre está numa livraria, e isso é bom. Sem você, esses estabelecimentos se transformarão rapidinho em lojas de suplementos alimentares. Ou seja: você é importante. Um setor crucial da nossa vida cultural agradece de joelhos.

O problema sempre está no exagero. Impossível não ouvir suas conversas com os atendentes da livraria. É que você gosta de falar alto. Prefiro não ver arrogância nesse seu comportamento. Quero ser sincero: em alguns momentos, eu acho que sua voz alta tem mais a ver com o desejo -- perfeitamente humano -- de brilhar. Mas passa, e então minha mente passa a ser povoada por pensamentos mais nobres.

Na maior parte do tempo, acredito que as suas interações na livraria têm uma finalidade pedagógica. Você não fala alto por ser inconveniente; você apenas quer espalhar conhecimento. Quer que muita gente mergulhe no mundo dos livros. Seus objetivos são nobres.

Então, qual seria o problema? Simples de perceber, difícil de dizer. Soará grosseiro. Mas estou aqui para ajudar. Seu amor irrestrito aos livros é o grande problema. Já ouvi dizer que você ama os livros, não importa o tipo. Qualquer coisa serve. Parece bacana, mas não é. Ninguém ama sem restrições. Sem contar que “amar um livro” é hiperbólico. Culpa de nossos tempos. “Amamos” qualquer coisa. Sempre impliquei com essa história. Mas não quero me alongar nessa história.

É um perigo você dizer que ama todos os livros. Perdoe a minha bisbilhotice, mas já ouvi você dizer que adora o cheiro do livro e que fica passando os dedos lentamente pelas lombadas. Bom, cada um com as suas manias. Para mim, é uma erotização que merece ser analisada. Eu, por exemplo, tenho vários livros em casa. É claro que eu gosto de uma capa bonita. Já trabalhei em editora, e sei que o apuro gráfico é crucial. Faz uma diferença enorme. Mas, desculpe se soa antipático, prefiro o que o texto traz. Nessas horas, impossível dizer que tudo é a mesma coisa apaixonante.

Pode me chamar de marrento, mas há textos bons e textos ruins. Longe de mim estabelecer critérios científicos para essa avaliação. É um terreno pantanoso. O que eu quero dizer é mais simples: cada um tem seus textos preferidos. Achar que tudo é maravilhoso é sinal de embotamento.

Mas não quero me despedir com palavras antipáticas. Continue gostando do livro, mas contenha a empolgação. Seja feliz.