Carl Sagan urgente
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Semanas atrás, um aluno perguntou qual tinha sido o livro que mais me marcou. Ele esperava que eu dissesse algum classicão da literatura. Quase falei: “Guerra e paz”. Mas pensei melhor e soltei: “O mundo assombrado pelos demônios”, de Carl Sagan.
Eu o li pela primeira vez em 1997. Até hoje tenho a edição meio amarelada. E até hoje lembro da minha empolgação enquanto percorria aquelas páginas aos dezenove anos de idade. Não exagero ao dizer que muitas das minhas convicções foram marcadas pelas palavras de Carl Sagan.
Ele, merecidamente, está entre as grandes figuras do século XX. Não é pouca coisa unir rigor científico e divulgação acessível. Seus livros e programas de televisão são a prova comovente de que profundidade e graça podem caminhar de mãos dadas. Aqui no Brasil, Fernando Reinach segue a linha de Sagan, escrevendo artigos que fazem o leitor morrer de vontade de estudar a fundo biologia.
Mas voltemos a Carl Sagan. Em tempos mais arejados, eu provavelmente gastaria muito mais linhas tratando da graça do estilo dele. Do humor fino. Das comparações maravilhosas. Em suma, de um estilo que é literatura do mais alto nível. Oliver Sacks faz algo parecido em seus livros. Eis um outro sujeito que merece ser conhecido.
Infelizmente, os tempos não são arejados. Eles são sufocantes. Tenho andado de humor azedo ultimamente e acho que o leitor regular desta coluna já notou. Eu poderia mencionar aqui vários exemplos que justificam meu estado de espírito. Seria perda de tempo. Acho que encontrei algo que junta as pontas.
Meu azedume atual tem por base a perigosa visão de mundo que renega a ciência e valoriza o sentimentalismo. Sei que muita gente estranha quando digo uma coisa dessas. É que é forte a crença de que o apreço pela literatura apaga qualquer traço de paixão pelo pensamento científico. A literatura é traço fundamental da minha vida profissional. Também é ponto crucial dos meus momentos de ócio. Já disse mais de uma vez: não consigo ficar um dia sem ler algo. Mas isso não anula meu amor pela ciência.
Eu sempre fui das humanas. Meus pontos fortes concentravam-se em história, geografia e língua portuguesa. Eu penava um pouco em algumas áreas de química, física e matemática. Mas não passava vergonha. Mais ainda: alguns departamentos me conquistaram definitivamente. Exemplos: análise combinatória, estatística, microbiologia, mecânica. Hoje, um dos grandes arrependimentos da minha vida foi não ter me dedicado com mais afinco às belezas da matemática. Se bem que o que eu carrego dá pro gasto. Minha bagagem científica impede que eu passe vergonha. Sou grato aos professores maravilhosos que tive na educação básica e sou grato ao Carl Sagan.
É que, nas primeiras páginas de “O mundo assombrado pelos demônios”, ele faz uma defesa enfática do pensamento científico. Ele, com muita graça, vai percorrendo as premissas dessa visão de mundo. E consegue mostrar que a postura científica pode -- e deve -- ser aplicada nas mais diversas situações do cotidiano. Esticando um pouco a corda, dá pra dizer que a metodologia científica pode evitar que políticos pilantras tomem o poder. A metodologia científica também nos tira do domínio da ingenuidade e das ações que não levam a nada. Infelizmente, muita gente associa ciência com frieza e desumanidade. Eu acho que é justamente o contrário. Nada mais belo e humano do que a tentativa de entender a vida.
Hoje, ler Carl Sagan é urgente. Ele nos ensina que fato é diferente de opinião. Parece bobagem dizer uma coisa dessas, mas não é. Quando se embaralha fato com opinião, muita gente acaba sofrendo. A epidemia de coronavírus está aí para atestar. Perdi a conta de quantas vezes vi pessoas dizendo as maiores atrocidades a respeito. Tem de tudo um pouco. É o desparecimento de máscaras cirúrgicas do mercado. É o menosprezo ao risco que estamos correndo. É a tentativa de rotular o medo como frescura. Sou a favor de punição severa para quem espalha essas abobrinhas.
Hoje, eu diria que caras como Carl Sagan salvam vidas.