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Brasil, 2019

31 de Maio de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

O que é olhar o mundo a partir da lente do lirismo? É encantar-se com as miudezas. É gastar horas matutando depois de ver um cachorro vira-lata rolando gostosamente na grama do terreno baldio. Pensem nas possibilidades. Basta dar o primeiro passo na rua.

E o mundo a partir da lente épica? É olhar a multidão e amarrar os fios que unirão as pessoas. É compreender que todas as histórias pessoais são complexas. É reconhecer que uma ação banal aqui terá reverberações graves ali. Pensem nas possibilidades. Basta reparar o que pode acontecer na vida de uma pessoa ao longo do ano.

E o mundo a partir da lente dramática? É acreditar no instante decisivo. É notar que há momentos que podem decidir a vida de um sujeito. Pensem nas possibilidades. Basta vasculhar na memória. Sempre encontraremos aqueles segundos depois dos quais nossa vida deu uma guinada.

Qual é a melhor lente? Impossível responder. Fica melhor dizer que depende da hora. Passamos por momentos líricos, épicos e dramáticos. E isso é bom. Abraçamos melhor a vida agindo assim.

Agora imaginem um escritor no Brasil de hoje. Ele não é poeta. Ele deseja contar uma história. Sua história não pode ser uma qualquer. Ninguém começa a escrever dominado pelo conformismo. Depois a conversa é outra. Mas agora o escritor brasileiro quer dar tudo de si.

Imaginem que o nosso escritor queira fazer em sua narrativa um panorama contemporâneo. Seu sonho é que as páginas de seu livro mostrem a vida como ela é. Sendo assim, ele opta pelo romance. Ele pensa: que o meu livro seja uma fatia da vida de hoje. Convém dizer que ele é fã de Balzac e de Zola. E ele acha que dá para fazer o que eles fizeram no século XIX no século XXI. Por mais que muita gente diga que não dá mais para escrever desse jeito, ele teima.

Sabiamente, ele descarta a lente do lirismo. Seu humor não está para essas coisas. Ele sabe muito bem onde está pisando: Brasil, 2019. Ele fica em dúvida se descarta a lente dramática. Constata que abrir mão do momento decisivo pode enfraquecer o romance. Resolve o seguinte: épico com pitadas de dramático.

O tom foi encontrado. É um grande passo. Resta saber que personagens e situações povoarão a história. Passa madrugadas acordado rabiscando o caderninho de anotações. É meticuloso. Suas personagens não podem ser pálidas. As situações precisam ter nexo. Muitas madrugadas depois, há um esqueleto de enredo. Hora de criar músculos e peles.

Nesse momento, ele precisa calibrar a dose de realismo de sua narrativa. Algo cru ou algo alguns centímetros acima do chão? “O Cortiço” ou “Cem anos de solidão”? Reconhece que a sua imaginação não chega aos pés da imaginação de Gabriel García Márquez. Decide recorrer ao que tem de melhor: sua capacidade de observação.

E ele passa a observar rigorosamente a sua cidade e o seu país. Não é uma tarefa simples. Tampouco é uma tarefa glamourosa. As ruas estão sujas. O trânsito é um inferno. Os carros estão blindados. Os muros estão mais altos. Morre-se de medo de sair à noite. Todos desconfiam de todos. Canalhas aparecem rindo nas colunas sociais. Criminosos desfilam com seus carros importados caríssimos. Ouve com cada vez mais frequência que quem estuda muito é otário. Youtubers cretinos ganham num mês o que um trabalhador nunca ganhará ao longo da vida. A porrada corre solta por qualquer besteira. As carteiradas abundam. Os sites de notícias priorizam a fofoca ridícula. Milhões de pessoas querem que a vida retroceda ao ano de 1450. Um monte de gente morre diariamente nos hospitais. Um monte de adolescentes saindo da escola mal sabendo ler e escrever e acreditando que será fácil ganhar uma bolada com uma ideia genial. Em suma, um mundo de ratazanas usando perfume de civilização.

Ele descobre, para dar conta desse horror, que o épico e o dramático deverão dar as mãos ao romance policial. Sua história será sangrenta, dura, tenebrosa, povoada de canalhas e perversos. A morte será banalizada. A morte encontrará aplausos entusiasmados. Tudo será sujo, triste e injusto. Os melhores tombarão. Os piores comandarão as alavancas e estamparão sorrisos branquíssimos que custaram milhares de reais.

E ele terá escrito o mais realista dos romances.