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Arroz com feijão

12 de Março de 2021 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Muitas pessoas acham que o Neymar é craque porque faz jogadas espalhafatosas. Aplaudem os dribles barrocos e as firulas. É uma maneira de encarar o futebol. Respeitemos.

É fácil encontrar no YouTube vídeos que aglutinam vários lances do Ronaldinho Gaúcho. Há quem diga que ele teria tudo para ser o maior jogador de todos os tempos. Lamenta-se que o brilho dele tenha durado pouco tempo. Os que lamentam são os mesmos que consideram o Neymar genial.

Quando vejo futebol, reparo em outras coisas, e não é de hoje. Em 2010, Neymar e Paulo Henrique Ganso apareceram com tudo no Santos. O Neymar protagonizava os dribles sinuosos e o Ganso dava os passes minimalistas que resolviam um jogo. Teve muita gente defendendo a convocação dos dois para a Copa do Mundo naquele ano. Não foram convocados. O Brasil foi de Grafite, Luís Fabiano e Felipe Melo mesmo. Dunga comandando a equipe. Vocês conhecem o resultado.

Acabei me perdendo, pra variar. Eu estava dizendo que, em 2010, Neymar e Ganso apareceram como enormes promessas. Promessas com características muito diferentes. Neymar era espetáculo e Ganso era retidão. A esmagadora maioria do público cravou que o craque verdadeiro era o Neymar. O Ganso, na melhor das hipóteses, seria um excelente coadjuvante.

Eu nunca concordei com esse tipo de análise. Não estou falando especificamente do caso do Ganso. Ainda mais que os anos seguintes e as lesões mostraram que ele era fogo de palha. Falo de algo mais abrangente. O que eu quero dizer é o seguinte: costumo valorizar o que é aparentemente simples.

Usei o Ganso como um pálido exemplo. Exemplo do cara que me encantou ao optar pelo passe em linha reta, ao optar pelo toque de primeira. Eu poderia mencionar um outro jogador: Yayá Touré. O Touré era impressionante. Ele era um mestre do minimalismo. Um toque pra dominar a bola, outro pra despachá-la com sabedoria. Na superfície, algo fácil de se fazer. Só na superfície. Há que se ter muita técnica e muito talento pra fazer uma obra com simplicidade. Sim, obra. Futebol é muito mais que um jogo.

Dá pra expandir a reflexão para a literatura. Muita gente acha que escrever bem é a mesma coisa que rechear o texto com frases enormes e com vocabulário parnasiano. Um texto simples tende a ser visto como algo não tão digno de respeito assim. Manuel Bandeira ilustra bem o que estou tentando dizer. Pense nos seus poemas da maturidade. Zero de firula. A ausência de firula espanta o leitor de primeira viagem. É que o leitor de primeira viagem costuma achar que o poema deve ser o símbolo da coisa enfeitada. A grandeza do Bandeira está justamente na simplicidade arduamente atingida.

Tolstói é um outro bom exemplo. Seus contos e fábulas, boa parte desse material escrito na velhice, são ágeis e comoventemente claros. Tolstói fez o que fez por opção e não por limitação. Decidiu que seus textos seriam espartanos. Sempre importante lembrar: quem escreve “Guerra e paz” é capaz de executar qualquer coisa.

Resolvi escrever hoje sobre simplicidade porque estou lendo um romance do Brian Moore. Não é fácil encontrar um livro dele dando sopa por aí. Tem que ser rato de sebo pra se deparar com um título do grande escritor irlandês. O que estou lendo chegou nesta semana, depois de garimpagem em sebos virtuais. Chama-se “Mentiras do silêncio” e tem aquilo que mais gosto em Moore: a aversão à firula. Frases curtas, vocabulário contido, ação se desenrolando sem tropeços. Diversão garantida.

Simenon, um dos meus escritores preferidos, também abominava a firula. O enredo dos romances protagonizados pelo comissário Maigret é puro músculo. Essa dádiva também aparece nos “romances duros” de Simenon.

Paulo Henrique Ganso, Yayá Touré, Manuel Bandeira, Tolstói, Brian Moore e Simenon oferecem arte decantada. Oferecem, perdoem a metáfora fominha, o mais glorioso de todos os pratos: arroz com feijão bem temperado.