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A verdadeira sabedoria

06 de Setembro de 2019 às 00:01

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Dou aula para adolescentes. Isso sempre rende observações interessantes. Por exemplo, a moçada de hoje não é ligada em televisão. Difícil concorrer com os milhares de canais do Youtube ou com as séries da TV a cabo e Netflix. Pouquíssimos alunos acompanham a novelona tradicional das nove da noite.

Não tenho vergonha de reconhecer que gosto muito de ver televisão. Vocês nunca me ouvirão dizer que a televisão é um tipo de ópio que serve para chapar o povo. Isso não significa que eu passe várias horas olhando para a tela, como um Homer Simpson sorocabano. Não trabalho pouco, e ainda tem um nenê em casa. Também não tenho estômago para ver Faustão e afins. Devoção tem limites.

Não é só uma questão de gostar muito de ver televisão. Certamente rola um lance proustiano: minha sensibilidade artística foi forjada pela televisão dos anos 80 e do início dos anos 90. Depois vieram os livros e as firulas dos clássicos. Primeiro, o programa cômico -- e genial -- do Jô Soares. Depois, Cervantes e Tolstói. Dá para servir a dois senhores ao mesmo tempo.

Certamente eu conseguiria escrever um tratado a respeito de programas geniais dos anos 80 e início dos anos 90. Pena que não tenho tempo. Pena que falte disciplina. Deixo a dica para os acadêmicos tenazes.

Ora, se os programas antigos de televisão tiveram um peso enorme na minha formação, é claro que isso influencia a maneira como eu vejo a vida e a literatura. Não quero dizer que eu sou modelo para qualquer coisa. Só estou abrindo o meu coração. Mas o que eu queria dizer é o seguinte: a televisão impediu que eu arrebitasse o nariz em várias situações. Obrigado, televisão!

Eu queria ser menos vago e puxar alguns exemplos. Quem tem a minha idade sabe que a Sessão da Tarde moldou o caráter de muita gente. Digamos que a atração não primava pela diversidade. Ao longo de um ano, determinados filmes eram transmitidos umas cinco ou seis vezes. Alguns deles eram de uma chatice olímpica. Nunca consegui ver “História sem fim” de cabo a rabo. Mas eu pirava com “Warriors”, “Um príncipe em Nova York” e “Trocando as bolas”.

Os dois últimos merecem a minha mais ardorosa homenagem. Protagonizados pelo maravilhoso Eddie Murphy, são exemplos acabados de entretenimento que vicia. Já vi os dois filmes umas duzentas vezes, e nunca enjoarei deles. Comédia e elementos sombrios aparecem perfeitamente casados. As desgraças são dribladas com dignidade, galhardia e ironia afiada. Vejam se isso não é uma lição de vida. Dá de dez a zero em livros que dizem que o universo está orquestrado a seu favor e que você é a coisa mais linda deste mundo. Eu não troco as trapalhadas do Eddie Murphy por nada. Eu ia dizer que “Um príncipe em Nova York” e “Trocando as bolas” são o ponto alto da arte do século XX, mas vocês achariam que eu estou fazendo graça. Melhor deixar quieto.

Vocês precisam saber que as devoções não são necessariamente estáveis. Algumas delas ficam adormecidas por alguns anos e voltam com tudo. Não há explicação, eis o barato da coisa toda. Eu amava os filmes do Eddie Murphy na infância e na adolescência. Depois eles ficaram numa espécie de congelador afetivo. De uns tempos pra cá, tomei vergonha na cara e reativei algumas das paixões antigas. Chega de sentir vergonha de gostar das coisas boas da vida.

A paixão voltou com tamanha força, que eu cheguei a uma constatação meio bizarra: se eu fosse romancista ou roteirista, ficaria feliz se escrevesse histórias como as protagonizadas pelo Eddie Murphy. Nada de dilemas matizados. Nada de protagonista solitário mirando as gotículas de chuva na janela. Seriam trecos com muita ação, reviravoltas grotescas, personagens caricaturais e humor ágil. Parece pouco, mas é muito. Tem que ser genial para escrever assim.

É por isso que, hoje, Dorothy Parker, Marcos Rey, Carl Hiaasen, Anthony Bourdain e Dashiell Hammett são os donos do meu coração. Essa turma sabia muito bem o que estava fazendo.