A sujeira da vida
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Sou um cara de oscilações. Preguiçoso para algumas coisas; ativo para outras. Já passei da fase de esquentar com isso. A vida é assim mesmo. Fazer o quê? Não me passa pela cabeça procurar um coach.
Sou ativo nas leituras. Não consigo me imaginar passando um dia sem ler alguma coisa. Já faz tempo que superei a fase da leitura por ostentação. Todos os leitores vorazes passam por essa fase. A gente gasta boa parte do tempo tagarelando sobre um romance russo qualquer. Isso sempre rende olhares de admiração. Depois fica um treco meio chato. É fácil cruzar a fronteira do pedantismo.
Se o sujeito é um leitor voraz, supera rapidamente a fase da leitura por ostentação. Logo depois ele navega pelas águas da leitura instrumental. Isso ocorre quando ele entra no mercado de trabalho. Ele devora tudo aquilo relacionado a sua carreira. Sempre vale a pena. Num mundo em que as pessoas têm horror à leitura e à escrita, escrever adequadamente um relatório é um belo atalho.
Depois da fase da leitura instrumental, vem aquilo que realmente importa. É a leitura que atende a uma necessidade existencial. Mais ou menos assim: eu preciso dessa história para que, de um jeito ou de outro, as coisas façam sentido para mim. Ou: estou com um tempo livre, e minhas opções são o Faustão ou o Gugu. Acho que você já entendeu.
As leituras caminham bem por aqui, mas as viagens, não. Nunca gostei de viajar. Tenho fobia de aeroportos e rodoviárias. Fazer as malas sempre será algo melancólico para mim. Olho torto para turistas. Para mim, são pessoas em busca de uma vida editada, limpinha. É aquela velha história de só querer conhecer os pontos mais conhecidos de uma cidade e ficar tirando um monte de selfies. (E depois ficar garganteando sobre as aventuras na varanda gourmet.)
Aí você vai achar estranha esta coluna. O cara começa falando de leitura e avança para um discurso contra as viagens. Tenha calma. Já vou amarrar as pontas.
Dá um pouco de medo de escrever o que eu pensei para este parágrafo, mas vamos lá: não gosto de viagens porque viajo com a ajuda dos livros. É que é um baita de um clichê. Certamente você já viu a referência nessas campanhas de incentivo à leitura. Campanhas com musiquinha melosa e todo mundo caminhando feliz pela praça. E a coisa não muda um centímetro. Somos um país que abomina a leitura. Lamento informar: essa situação só vai piorar nos próximos anos. Quer apostar?
Mas eu estava falando sobre as minhas viagens pelos livros. Vai ver eu me contento com pouco. Vai ver é preguiça mesmo. O que conta é o seguinte: eu conheço São Petersburgo pelas palavras de Gógol e Dostoiévski. É o que basta. Também leio jornais e revistas. Sei como São Petersburgo está agora. Não quero pagar uma fortuna pelo almoço. Não quero ver carrões cafonas.
Coincidência sempre mexe com a gente, não? Esses dias mesmo eu estava vendo um telejornal que mostrava algumas cenas de Washington. Nada de novo. Casa Branca e afins. Dei um risinho maroto. É que, nos últimos dias, mergulhei nos romances policiais de George Pelecanos. Não há melhor maneira de se conhecer Washington. As tramas em ritmo acelerado mostram a pobreza, os barzinhos, a polícia, o crack, o racismo, o comércio mais antigo, a prostituição, a sujeira, gente honesta, gente agonizando, gente engraçada, gente aproveitando a vida. É a cidade em várias camadas. Todas as cidades funcionam assim. Diacho, por que eu sairia do conforto do meu apartamento para ouvir um guia qualquer tagarelando a respeito de Lincoln? Enquanto eu via o telejornal e dava o meu risinho de sabichão, lembrei de Jimmy Breslin, um dos meus ídolos do jornalismo. E aí eu fiquei meio triste. É que Breslin, em suas colunas diárias, capturou como ninguém a vertigem que é Nova York. Seus textos curtos são um milagre de prosa indignada e olhar piedoso para os que realmente sofrem. Eu fiquei meio triste porque acho que toda cidade deveria ter um Jimmy Breslin indignado e genial. Caras como ele mostram a alma de uma cidade.
São antídotos que combatem o turismo limpinho e inofensivo.