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A leitura da bagunça

14 de Junho de 2019 às 00:01

Crédito da foto: PxHere

Nelson Fonseca Neto - [email protected]

Por que você lê? Estou excluindo da pergunta as leituras feitas por obrigação. Acho que eu ouviria vários tipos de respostas: conhecimento é poder; quero aumentar meu vocabulário; quero entender melhor algumas situações; quero escapar da realidade cinzenta; quero conhecer outros mundos. E por aí vai. Não há motivos bons ou ruins. Cada um sabe onde o sapato aperta. Vou falar o que aconteceu comigo nos últimos dias. Não pretendo que vocês façam igual. É mais uma confissão mesmo.

Claro que uma parte das minhas leituras atende a necessidades profissionais. Sou professor. Impossível encarar a coisa de outra maneira. Trabalho com literatura, gramática e redação. Não comecei a dar aulas ontem. Lá se vão quase vinte anos. Seria tentador ligar o piloto automático. Tentador e irresponsável. Acho que não preciso entrar em detalhes. Basta ter bom senso para reconhecer o que estou dizendo.

Mas sempre sobra tempo para leituras que seguem o princípio do prazer. É aí que a coisa fica engraçada. Minhas leituras por prazer são cíclicas. Para mim, é fácil notar. Já passei longos períodos lendo dezenas de obras do mesmo gênero. Anos atrás, por exemplo, atravessei meses lendo somente romances policiais. Foi uma bela viagem. O duro é que você acaba pegando uns cacoetes de detetive durão. Depois passa. Ainda bem.

Já assumi o compromisso de ler apenas os classicões ao longo de um ano. E dá-lhe Cervantes, Homero, Swifit, Kafka, Machado de Assis, Shakespeare, Tolstói etc. Foram meio turbulentas as semanas em que enfileirei os romances da maturidade de Dostoiévski. Quando venci a última página do último livro (“Os irmãos Karamázov”), eu estava sedento por amenidades. É que estava complicado sair por aí e ficar dividido por conta de dilemas morais insolúveis.

Também tive o meu período de biografias. Simenon, Sinatra, Dashiell Hammett, Lima Barreto, Getúlio Vargas, Roberto Campos, Guardiola, Jurgen Klopp. Foi o caos. E foi uma delícia. Tornei-me um arquivo de histórias relevantes e de anedotas bizarras.

Faz um bom tempo que minhas leituras não se dão por blocos ou metas ambiciosas. Vou lendo o que me dá na telha. Hoje, dia em que escrevo esta coluna, estou lendo um romance maravilhoso: “Arquivo das crianças perdidas”, de Valeria Luiselli. Não sei o que virá a seguir. Pode ser a “Trilogia USA”, de James Ellroy, ou “Expedição ao inverno”, de Aharon Appelfeld. Não poderia haver contraste maior. O primeiro escreveu milhares de páginas sobre a violência que atravessou os EUA nas décadas de 50, 60 e 70; o segundo recorre à concisão alegórica que retrata os horrores da Segunda Guerra Mundial. Por aí vocês avaliam que não bato bem das bolas.

No último fim de semana, deu para ler dois ótimos romances publicados pela editora Todavia: “Mars Club”, de Rachel Kushner, e “Meu ano de descanso e relaxamento”, de Ottessa Moshfeg. São duas jovens escritoras que provam que a literatura ainda é crucial. “Mars Club” é a história, em primeira pessoa, de uma presidiária que cumpre pena de prisão perpétua. À primeira vista, um cenário que pede um estilo dramático, indignado. Mas não é assim que a banda toca. Kusnher, em boa parte do livro, recorre ao humor macabro. As coisas mais escabrosas são relatadas a partir de uma voz irônica e compassiva. Assim, tristeza e humor caminham de mãos dadas. Ficamos com um retrato sombrio do sistema penitenciário dos EUA. Boa leitura para os que acham que ali é uma imensa Disney.

Por sua vez, o livro de Ottessa Moshfeg é ambientado numa Nova York familiar aos devoradores de séries de televisão. É o mundo da classe média alta. A protagonista é uma jovem que não precisa se preocupar com questões financeiras. Ela é órfã. Não precisa trabalhar. Imaginem o desafio de escrever algo interessante a respeito de uma figura dessas. Moshfeg encara a briga. Sua protagonista, com a vida ganha, decide passar um ano basicamente dormindo com a ajuda de psicotrópicos. Ela acredita que sairá melhor da jornada. Ao longo do processo, entramos em contato com a ironia mais devastadora. E entendemos, de verdade, que ele tem os seus motivos.

Enfim, leituras contrastantes. Dessas que chacoalham a gente. E isso sempre é bom.