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A boa briga

24 de Agosto de 2018 às 09:15

Vou falar um pouco a respeito da minha experiência como professor. Estou na profissão há dezoito anos. Parece que foi ontem que eu dei a primeira aula. Ainda fico espantado com o meu nervosismo na época. Esse meu nervosismo se refletiu na camisa ensopada de suor nos minutos que antecederam a aula. Foi meio trágico na hora. Hoje é caricato, e virou anedota. Não deixa de ser uma lição. Somos sérios e dramáticos no presente e encaramos com serenidade muitas das tristezas do passado. No fim, deu tudo certo. Não consigo me imaginar fazendo outra coisa na vida. O suor desapareceu da esmagadora maioria dos dias. Ele surge apenas nos dias de calor mais intenso ou quando o ar condicionado da sala está desligado.

Longe de mim acreditar que me tornei um excelente professor. A gente aprende todos os dias, e isso não é falsa humildade. Basta ter o mínimo de sensibilidade. Também não vou bancar o santo e dizer que sou um péssimo professor. Impossível não melhorar ao longo de dezoito anos. Não tem como não aprender as manhas da profissão. Eu poderia sintetizar a caminhada da seguinte maneira: a gente aprende a brigar a briga justa. Nada de sair arrumando tretas bobas. Faca nos dentes na hora de defender algumas convicções.

Brigar por ninharias é fazer o papel de chiuaua. Sempre chega a hora em que os nossos latidos se tornam caricatos. Na melhor das hipóteses, as pessoas deixam de falar a verdade perto da gente. Somos os ilustríssimos chatos. E isso não leva a lugar algum. Perde-se a credibilidade. A gente tolera um monte de coisas nesta vida, e a chatice não é uma delas.

Só se entra na briga justa com conhecimento de causa. Se não for assim, é ataque histérico. A briga justa envolve mirar na jugular de algumas questões. No âmbito escolar, os casos abundam. É fácil e cômodo apontar o dedo para os alunos e dizer que nada dá certo porque eles são de uma geração perdida. Por incrível que isso possa parecer, ainda rola -- e muito -- esse papo de geração. Tudo é culpa do celular, da internet, do YouTube, disso e daquilo. Como se nós, os mais velhos, tivéssemos passado como querubins pela escola. Faz parte da brincadeira jogar o piano nos ombros dos mais novos.

Peguemos o exemplo da leitura na escola. Amamos fazer cara de tristonhos e dizer que a turma de hoje não quer saber de ler, e que nós líamos exemplarmente. Duas mentiras acontecem aqui. Primeira: tenho muitos alunos que gostam de ler; encaram as leituras obrigatórias, seguem as recomendações, trilham seus próprios caminhos. Evidente que também tenho alunos que não gostam tanto assim de ler. Já falaremos a respeito deles. Segunda mentira: na média, nós não éramos leitores exemplares. Quando Machado de Assis surgia, torcíamos o nariz do mesmo jeito. Vale a pena esticar a conversa para a escrita. Não éramos originais, e as dissertações saíam quadradas, chatas que só.

Chegou a hora de falarmos a respeito dos alunos mais resistentes à leitura. Não tocarei em questões neurológicas. Não é o momento de sacarmos o manjado argumento do incentivo familiar. O negócio aqui é sobre o papel de escola. Pode parecer bobagem, mas acho que a escola precisa ter mais orgulho de si e parar de arrumar desculpas para falhas que dependem só dela arrumar. Não sou tonto a ponto de afirmar que tudo deve ser jogado nas costas da escola. Ninguém pensaria num absurdo desses. O que eu estou querendo dizer é que dá para fazer mudanças iluminadas.

Um exemplo, ainda que tratado aqui de forma superficial: derrubar a primazia da ficção na escola. Claro que é legal viajar pelo mundo da fantasia. Claro que é bacana conhecer personagens fortes. Mas não precisamos ficar só nisso. A escola precisa abrir suas portas para as maravilhas da não ficção. É dar um belo tiro no próprio pé apostar todas as fichas no José de Alencar e ignorar o Truman Capote. Há centenas de livros circulando por aí e que tratam de assuntos instigantes. Ou vocês acham que a floresta de Gonçalves Dias é mais interessante que um estudo a respeito da nossa terrível violência urbana?

Eis um caso do que é uma boa briga.

Nelson Fonseca Neto - [email protected]