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Editorial

Jornalismo é um ato de coragem

Para o advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, "o que o STF fez foi praticamente tornar a atividade jornalística uma atividade de risco"

30 de Novembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
A partir de agora, veículos de comunicação podem ser punidos na esfera cível por declarações de seus entrevistados
A partir de agora, veículos de comunicação podem ser punidos na esfera cível por declarações de seus entrevistados (Crédito: Reprodução)

No mesmo dia em que a Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a educação, e seu Programa de Liberdade de Expressão e Segurança a Jornalistas receberam o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa 2023, da Associação Nacional de Jornais (ANJ), o jornalismo brasileiro sofreu um grande revés.

Uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta-feira, 29, determina que os veículos de comunicação sejam responsáveis pelas declarações dadas pelos entrevistados.

O STF determinou que jornais, revistas e portais jornalísticos, a partir de agora, sejam punidos na esfera cível por declarações de seus entrevistados contra terceiros se houver “indícios concretos” de que a informação é falsa.

Duro é avaliar, no momento dos fatos, quem está com a verdade.

A decisão, ainda não publicada, levantou uma série de dúvidas na categoria e provocou reações duras de instituições ligadas ao setor.

O que se sabe, com certeza, é que esse tipo de ameaça à liberdade das redações coloca em risco a democracia brasileira e pode gerar uma autocensura nunca vista na história do país.

Denúncias importantes deixarão de ser publicadas pelo simples medo de que o depoimento do entrevistado, no futuro, possa ser julgado improcedente e abrir caminho para pesadas multas ao já combalido caixa das empresas de jornalismo e de mídia.

Os responsáveis pelas publicações, aqueles que assinam diariamente os produtos jornalísticos, também vão ter de pensar duas vezes antes de liberar uma reportagem para publicação.

Basta voltar um pouco no tempo e imaginar como esse tipo de decisão impediria que casos escabrosos de corrupção no país fossem descobertos.

Na década de 1990, por exemplo, qual jornal ou revista teria coragem de publicar a entrevista de Pedro Collor denunciando falcatruas do irmão presidente, se soubesse que lá na frente poderia ser punido?

O mesmo vale na década de 2000 para o jardineiro que denunciou o esquema que ocorria na casa do ex-ministro Antonio Pallocci, em Brasília, e que ajudou a desvendar as origens do Mensalão do PT.

As declarações de Roberto Jefferson sobre o esquema também teriam sido engavetadas.

O ministro Marco Aurélio Mello, hoje aposentado do STF, era o relator do recurso que levou a Corte a chegar a essa decisão.

Para ele, é um “embaraço” ao exercício da profissão a responsabilização de veículos da imprensa por acusações de entrevistados a terceiros.

Quando votou no julgamento, o ministro foi contra a tese agora aprovada por maioria pelo tribunal.

Marco Aurélio afirmou, em entrevista, que a decisão vai na contramão da liberdade jornalística. “Eu não queria estar na pele da imprensa”, afirma o ministro aposentado.

Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, “o que o STF fez foi praticamente tornar a atividade jornalística uma atividade de risco. Ocorre que o exercício da liberdade de imprensa é um direito e transformar o exercício do direito em um risco é absolutamente contraditório. É um entendimento totalmente equivocado do papel da imprensa”.

O advogado acredita que essa decisão seja inconstitucional, mas como argui-la se a decisão partiu exatamente de quem deveria zelar pelo cumprimento da Carta Magna.

Mesmo contrariada, a Associação Nacional de Jornais, em nota, considerou que a decisão do STF sobre a responsabilidade de veículos de comunicação em relação a declarações de terceiros foi um avanço positivo diante da ameaça, ainda mais grave, que existia à liberdade de imprensa no final do julgamento do caso envolvendo uma publicação do Diário de Pernambuco.

Segundo a entidade, a modulação dos votos reforçou a natural responsabilidade dos veículos com o que divulgam, mas ainda pairam dúvidas sobre como podem vir a ser interpretados juridicamente os citados “indícios concretos de falsidade” e a extensão do chamado “dever de cuidado”.

A ANJ quer aguardar a elaboração e publicação do Acórdão com o teor inteiro do julgamento para poder posicionar-se de uma forma mais concreta.

Várias situações deixam dúvidas. Esse tipo de restrição só vale para entrevistas exclusivas ou também para as coletivas e discursos de autoridades constituídas? Um veículo de comunicação ao publicar a fala de um deputado ou o discurso exagerado de um presidente também incorre nesse risco? Nos casos das reportagens ligadas ao mundo do crime, a acusação de um delegado ou de um promotor à determinada pessoa, no futuro, pode ser questionada?

O Supremo, mais uma vez, ao tentar criar parâmetros para que o que não pode ser padronizado, criou uma confusão ainda maior.

Resta saber como a sociedade vai agora escapar de mais essa armadilha jurídica contra a liberdade de expressão e a democracia.

E tudo isso aconteceu exatamente no dia em que o Brasil premiava aqueles que lutam pela liberdade no mundo todo.