Estratégia
90 anos de existência
Fundado em 1935, o Xadrez Clube de Sorocaba atravessa crises, transformações e gerações para se reafirmar como um dos mais tradicionais do País
A primeira vista, o xadrez pode ser considerado um jogo simples: apenas seis tipos de peças e um objetivo claro: encurralar o rei adversário. Mas a aparente tranquilidade rapidamente se desfaz quando os números entram em cena. No primeiro lance, são 20 as opções possíveis; no terceiro, já passam de 9 milhões. A escala cresce até atingir números inimagináveis. Inimagináveis também foram as dificuldades pelas quais um clube, quase centenário, precisou passar para alcançar a marca de nove décadas de existência. No início deste mês — dia 1º —, o Xadrez Clube de Sorocaba chegou a esse importante marco.
O início da história do xadrez em Sorocaba é marcado pela chegada de imigrantes alemães, que vinham trabalhar principalmente nas fábricas têxteis da cidade. Em suas bagagens vieram os primeiros tabuleiros. As primeiras reuniões de enxadristas das quais se têm registro foram por volta de 1883, na Cervejaria Fausty Schiming (que funcionou até 1915).
Ainda no século 19, o Clube Literário Germânia — que deu origem ao Gabinete de Leitura Sorocabano — organizou encontros esporádicos. Já no início do século 20, os monges beneditinos do Mosteiro de São Bento passaram a promover pequenas competições no Grêmio Juvenil do Mosteiro. Em 1919, foi realizado o 1º Torneio Aberto de Xadrez. O campeão foi Aletéia, cujo sobrenome não foi preservado pelos registros históricos.
Em 1935, o engenheiro Duílio Berti e mais nove pessoas fundaram o Xadrez Clube Sorocaba, em duas salas cedidas por Américo Corrá, na rua Newton Prado, Além-Ponte. O primeiro presidente foi o próprio Berti. No ano seguinte, em 1936, foi organizado oficialmente o 1º Campeonato Sorocabano de Xadrez, vencido também por ele. Na década de 1940, o Xadrez Clube se tornou uma das entidades fundadoras da Federação Paulista de Xadrez.
Ao longo de sua trajetória, o clube reuniu grandes personalidades da cidade, como o político Gualberto Moreira — figura intrinsecamente ligada ao esporte sorocabano, que dá nome ao Ginásio Municipal e foi prefeito entre 1948 e 1951 — e o professor Genésio Machado.
Cair, levantar e seguir
Nem só de bons momentos viveu o clube, que também atravessou períodos obscuros, especialmente nos anos 1980, quando há escassez de documentos, registros e até campeões sorocabanos sem identificação. Cesar Soares, considerado o maior jogador da história do Xadrez Clube de Sorocaba, oficialmente tem apenas dois títulos municipais, embora provavelmente tenha vencido outros no período, como afirma o ex-presidente Luiz Antônio Setti Filho. Outros jogadores históricos, como Antônio Soares e Wilson Zorob, o maior campeão sorocabano, também podem ter conquistado títulos que acabaram esquecidos pela falta de registros.
Durante a pandemia de Covid-19, o clube também enfrentou dificuldades, principalmente pela queda no número de sócios. A alternativa foi encontrar novas formas de gerar renda, especialmente por meio de torneios on-line. Em 2019, o XCS sofreu com a morte do então presidente, Wilson Zorob. Logo depois veio a pandemia, e, em 2022, um novo golpe: o falecimento de Adelino Pereira Ignácio, ex-presidente e figura histórica do xadrez sorocabano.
Impacto social
O Xadrez Clube de Sorocaba nunca foi sinônimo de exclusão. Desde seus primeiros anos, todas as pessoas eram bem-vindas às mesas do clube. A localização no Centro ajudou a atrair players de todos os perfis. O xadrez sempre foi democrático.
Nos últimos anos, a ascensão das plataformas on-line e a popularidade de enxadristas internacionais, como Magnus Carlsen, ajudaram a rejuvenescer o ambiente. Hoje, é comum visitar o clube e encontrar diversas crianças e adolescentes disputando partidas amistosas ou estudando. Exemplo disso é Samuel Gutierrez, de apenas 13 anos, que chegou à final do Campeonato Sorocabano deste ano e terminou em terceiro.
Além de prodígio, Samuel representa a continuidade das gerações no XCS: seu avô, também chamado Samuel Gutierrez, foi responsável por importar muitos livros de xadrez, ainda que em outros idiomas, possibilitando o estudo e a evolução de inúmeros jogadores.
Uma das maiores
Luiz Antônio, que frequenta o clube desde os anos 1990, afirma que o XCS é mais do que um espaço esportivo: é uma família. “Esse clube é algo além do xadrez. O xadrez é fantástico, mas a parte social do clube é algo maior. Por isso você sempre tem diretorias coesas, porque são continuidade uma da outra. Uma geração substitui a outra. Para todo mundo, entra essa questão cultural e social”, comenta.
Outro ex-presidente, Eugenio Herbst, que dirigiu o clube nos anos 1990, conseguiu garantir apoio mensal da prefeitura e promoveu uma reforma na sede. Com o olhar atento de um enxadrista e as mãos ágeis que movem peças, ele destaca que as diretorias mais recentes, especialmente a partir de 2010, fortaleceram a presença das famílias: “Os jovens, mas não apenas eles: as mães, os pais, as famílias frequentam. Porque o clube começou assim. Nos anos 50, as famílias vinham, as esposas participavam”, ressalta.
Passa pelos tabuleiros
O reconhecimento oficial da importância do Xadrez Clube não veio apenas de seus frequentadores e ex-presidentes, mas também do poder público. A relevância histórica e social da entidade ultrapassou as paredes da sede e se consolidou como patrimônio da cidade. Em 2023, a Câmara Municipal formalizou essa distinção ao criar uma data comemorativa específica, integrando o xadrez à identidade esportiva e cultural de Sorocaba.
O vereador Dylan Dantas (PL), autor da Lei nº 12.906/2023 — que instituiu o Dia do Enxadrista Sorocabano, celebrado em 1º de novembro, data de fundação do clube — atesta: “O Xadrez Clube Sorocaba é um verdadeiro patrimônio esportivo e cultural da nossa cidade. Há 90 anos, forma gerações de enxadristas, estimula o raciocínio, a estratégia e o pensamento crítico, além de representar Sorocaba em competições de alto nível. É motivo de orgulho, pois simboliza a inteligência, a disciplina e a tradição de uma cidade que valoriza o conhecimento”.
O secretário de Esportes, Victor Hugo Tavares, o Mosca, reforça: “De lá [do XCS] já saíram muitos campeões, levando o nome de Sorocaba para grandes cenários esportivos. Agora, nesses 90 anos, desejamos muita felicidade e sucesso. Temos grandes amigos lá e esperamos que continuem prestando esse excelente serviço à população”.
Patrimônio vivo
Atualmente, o clube conta com cerca de cem sócios, entre jogadores e familiares. Anualmente, organiza diversos campeonatos: além do tradicional Campeonato Sorocabano Pensado, promove torneios menores em ritmos mais rápidos. Localizado na rua Santa Clara, 106, Centro, o XCS se mantém graças aos seus sócios, ao apoio da prefeitura e, claro, ao esforço incansável de sua diretoria.
Quando perguntados sobre o futuro, os jogadores mais experientes são unânimes: “será brilhante!”. Mesmo aos 90 anos, o clube nunca havia testemunhado tantas crianças frequentando suas mesas e representando Sorocaba em torneios pelo país. O Campeonato Sorocabano Pensado é reconhecido pela dificuldade. Neste ano, pelo menos dois mestres nacionais participaram das eliminatórias e não conseguiram chegar às semifinais. Historicamente, foi uma das finais com menor média de idade da história do clube.
No dia do aniversário, em 1º de novembro, o XCS reuniu sócios, ex-presidentes, familiares e amigos para celebrar suas nove décadas. A sede na rua Santa Clara ficou pequena para tanta história. Entre tabuleiros montados, troféus expostos e fotografias antigas, a festa dos 90 anos foi mais que uma comemoração: foi a confirmação de que o espírito do clube segue vivo.
Enquanto veteranos relembravam histórias e traziam à memória companheiros que já se foram, as crianças disputavam partidas amistosas — prova de que o futuro do clube passará por suas mãos. Todos estavam ali para celebrar não apenas nove décadas de um clube, mas 90 anos de amizades, aprendizados e paixão pelo xadrez. A festa reforçou que o maior trunfo do Xadrez Clube de Sorocaba sempre foram as pessoas.
Assim como no tabuleiro, onde cada peça tem seu papel, o Xadrez Clube de Sorocaba prova que a verdadeira vitória não está apenas no xeque-mate, mas na capacidade de resistir, se reinventar e continuar jogando. Noventa anos depois, o rei permanece em pé, protegido não por torres ou bispos, mas por gerações de sorocabanos que entenderam que o jogo mais importante é aquele que nunca termina: o compromisso com a tradição, a cultura e a comunidade.