50 anos
Bodas de Ouro
Criada em 1975, Tira Prosa abre caminho para a presença das mulheres no futebol, inspirando gerações e ganhando espaço na história do São Bento
Há exatos 50 anos, um grupo de irmãs de Sorocaba ousou mudar a forma de torcer. Em pleno Estádio Humberto Reale — onde hoje funciona o centro administrativo e de treinamento do Esporte Clube São Bento —, Rosa Maria, Maria Helena, Marina, Maria José e Paula (falecida em 2004, vítima de infarto), as irmãs Ramalho, fundaram, em 21 de setembro de 1975, a Torcida Uniformizada Tira Prosa de Sorocaba, a primeira organizada feminina da qual se tem registro no Brasil.
Naquela época, a arquibancada, em Sorocaba e em boa parte do país, era um território quase exclusivo dos homens: as vozes e bandeiras femininas, embora presentes, eram minoria e não contavam com o devido reconhecimento ou espaço formal. A Tira Prosa nasceu do desejo de mudar essa realidade, com o incentivo do pai, José Ramalho, e da mãe, Lelé. Antes de se apaixonarem de vez pelo São Bento, a família dividia o amor pelo futebol com o Corinthians.
“Daí em diante, percorremos, com autorização do clube, o comércio de Sorocaba com um livro de ouro, solicitando ajuda para que ela [a torcida organizada] acontecesse. Arrecadamos o suficiente para a confecção de 50 camisetas, bandeiras e instrumentos de percussão. No dia 21 de setembro de 1975, após uma grande carreata, chegamos ao Humberto Reale”, relembra Maria Helena Ramalho, de 64 anos.
O nome da torcida teve como inspiração o mascote do clube, um pássaro azul chamado “Tira Prosa”, criado pelo artista Pinocchio, que se tornou símbolo da equipe em 1968, antes mesmo da fundação da organizada.
O lançamento da torcida, então, foi realizado no jogo entre o São Bento e a Portuguesa Santista, pelo Campeonato Paulista da época. “Naquele momento, já tínhamos quebrado uma forte resistência masculina à nossa presença nas arquibancadas, o que foi conquistado à custa de muita teimosia e da convicção de que mulheres podiam, sim, gostar de futebol”, comenta Rosa Maria.
Ainda assim, as irmãs enfrentaram comentários preconceitos, ora explícitos, ora sutis, o que as motivou a fazer um curso de arbitragem como forma de provar que, sim, conheciam e respeitavam cada regra e expressão daquele universo.
A ousadia da época rendeu, no ano seguinte, sob articulação de Rosa, uma viagem da família ao Estádio do Maracanã, em 1976, na famosa “Invasão Corintiana”, no Rio de Janeiro. As irmãs chegaram a personalizar o uniforme azul com o brasão do time paulista e entraram com uma faixa: “O São Bento torce pelo Corinthians”. A torcida alvinegra chegou a gritar o nome do clube sorocabano em coro.
Naquele mesmo ano, o grupo viajou até Araraquara e recebeu flores dos jogadores ao final da partida, no dia em que comemoravam um ano de fundação. Essas são apenas algumas das lembranças, entre tantas, ao longo dos 11 anos em que a torcida — que foi ganhando não só mulheres, como também homens — permaneceu ativa nas arquibancadas pelo Estado afora, apoiando o Azulão Sorocabano.
“Momentos marcantes ficam na nossa memória, nas lembranças de vitórias improváveis, acessos conquistados à custa de muitas lutas e emoções em jogos que não raramente dependiam de outros resultados”, relembra Rosa Maria, de 70 anos. “Para mim, isso foi um dos mais importantes capítulos da história das nossas vidas. Quebramos tabus dentro do futebol, maravilhosamente, com a espontaneidade da paixão pelo esporte. Toda história bonita nasce da espontaneidade”, complementa Marina Ramalho, de 67 anos.
“Pudemos acompanhar por vários anos, até que, com a chegada do casamento, da profissão e dos filhos, tivemos que passar o bastão”, diz Maria Helena. A aposentada de 64 anos segue respirando São Bento, agora nos bastidores da vida política do clube. Atualmente, é vice-presidente do Conselho Deliberativo.
Apesar de os compromissos diários terem mudado um pouco o rumo que a Tira Prosa tinha no início, seu legado jamais será apagado. “Sempre sonhamos com o futebol como sendo uma festa de família e, hoje em dia, é muito gratificante ver inúmeras mulheres e famílias no estádio”, reflete Maria Helena. “Atualmente, a presença da organizada nos jogos se faz praticamente em família, porém o legado dessa nossa atitude de enfrentamento à resistência na época é inegável. Criamos a torcida num período em que a prática do futebol era proibida para mulheres. Ressalte-se que muitos dos torcedores que fizeram parte da Tira Prosa ainda frequentam as arquibancadas do CIC, assim como nós, agora acompanhadas de uma terceira geração de são-bentistas”, acrescenta Maria Rosa.
A história de resistência e o desejo de mudar o que até então era inimaginável renderam às irmãs e à Tira Prosa uma homenagem do Museu do Futebol, localizado em São Paulo. Para outras informações, acesse: museudofutebol.org.br/crfb/instituicoes/640640.
Já para conhecer um pouco mais da história do centenário São Bento, que completou este mês 112 anos, o museu do clube lançou nas redes sociais seu acervo digital: @museusaobento. O prédio físico está em desenvolvimento.
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