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“Uso de antidepressivos não segue caminhos racionais”, alerta pesquisadora

27 de Março de 2019 às 14:16

Izabela Fulone analisou dados do sistema público de saúde da cidade de Porto Feliz, interior paulista. Foto: Paulo Ribeiro/Uniso

Texto: GUILHERME PROFETA

Você provavelmente já ouviu alguém se referir à depressão como a doença do século. Infelizmente, não se trata de alarmismo. Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) revelam que os transtornos mentais e de comportamento, entre os quais a depressão está incluída, irão afetar mais de 25% da população em algum momento da vida. Além disso, pesquisas indicam que a depressão é uma das dez doenças predominantes em todo o mundo e, dentro dos próximos dois anos, ela deverá ser superada somente pelas doenças cardíacas.

É por isso que pesquisas relacionadas ao seu tratamento são tão importantes. “A diretriz da Associação Médica Brasileira para o tratamento da depressão, revisada em 2009, recomenda que, para depressão leve, antidepressivos não devem ser empregados, indicando-se apenas a psicoterapia. Para os casos de depressão moderada a grave, os antidepressivos representam a primeira linha de tratamento”, diz Izabela Fulone, que estudou o assunto em sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso).

Porém, o que acontece é que os antidepressivos demoram de duas a quatro semanas para começar a apresentar algum efeito apreciável — o que é chamado de período de latência. A principal hipótese para explicar essa latência é a necessidade de mudanças adaptativas no processo de neurotransmissão central do paciente em tratamento. “Os fármacos antidepressivos têm em comum a capacidade de aumentar a disponibilidade de neurotransmissores como a serotonina, a noradrenalina e a dopamina, que controlam a sensação de humor e bem-estar”, explica Fulone. Mas esse processo leva algum tempo.

Nesse período, é comum que os médicos associem os antidepressivos a benzodiazepínicos, que têm efeito ansiolítico. “Os antidepressivos provocam ansiedade no início da terapia, ou mesmo outros efeitos adversos, que os ansiolíticos, tal como o diazepam ou outro benzodiazepínico, podem diminuir. Isso aumenta a adesão do paciente ao tratamento. No entanto, esse efeito é conseguido com três semanas de uso, no máximo quatro. Depois disso, o benzodiazepínico passa a ter efeitos indesejáveis, como a dependência, a tolerância, o aumento do risco de fraturas e até mesmo o aumento do risco de doenças como o Alzheimer”, explica a professora doutora Luciane Cruz Lopes, orientadora do estudo.

Fulone lembra que essa terapia combinada é uma prática comum em vários países, inclusive no Brasil, baseada na alegação de que o início do tratamento costuma ser um período crítico justamente devido à latência dos antidepressivos, o que acaba causando nos pacientes a exacerbação de sintomas como a ansiedade, a insônia e a irritabilidade, além de aumentar o risco de desistência ou mesmo de suicídio. Quatro semanas depois, contudo, os benzodiazepínicos podem deixar de ser administrados, uma vez que os antidepressivos já passam a apresentar seus efeitos, o que faz com que os benefícios da terapia combinada cessem depois de um mês, como demonstram as evidências científicas. Nem sempre, contudo, os pacientes interrompem o uso dos benzodiazepínicos e, com isso, o tratamento se prolonga.

A pesquisadora Izabela Fulone e a professora doutora Luciane Cruz Lopes (ao centro), em evento do Doutorado. Foto: Paulo Ribeiro/Uniso

Foi exatamente essa situação que levou Fulone a conduzir um estudo observacional, com o objetivo de analisar o tratamento e o acompanhamento da depressão no sistema público de saúde da cidade de Porto Feliz, interior de São Paulo, com foco no perfil de consumo de antidepressivos e benzodiazepínicos. “A pesquisa teve a finalidade de contribuir para a melhoria dos cuidados prestados aos pacientes deprimidos e para a redução dos riscos associados à toxicidade dos benzodiazepínicos. A consistente metodologia desse estudo e a validade de seus achados contribuem para a compreensão da forma como esses medicamentos são utilizados, além de servir como base para estudos nacionais e mundiais. Conhecer o cenário real, tanto o local quanto o regional, assim como suas fragilidades, barreiras e deficiências, é essencial para propor ações e estratégias que contribuam para melhorar o tratamento da depressão e o uso racional de medicamentos no Brasil”, defende Fulone.

No estudo, foram considerados os pacientes em tratamento com antidepressivos diagnosticados com depressão e atendidos no período de janeiro de 2008 a dezembro de 2009 no SUS (Sistema Único de Saúde) de Porto Feliz, compreendendo duas unidades básicas de saúde, seis unidades do Programa da Saúde da Família e três centros de especialidades. O número de prescrições totalizou 4.813, sendo 33,2% dos casos voltados ao tratamento da depressão. Desses, 53,7% configuraram terapia combinada e os outros 42,3%, monoterapia — ou seja, o uso de antidepressivos sem a associação aos benzodiazepínicos. “O que se constatou nessa amostra”, analisa Fulone, “é que houve maior utilização de terapia combinada para o tratamento da depressão, em detrimento da monoterapia. Os antidepressivos e benzodiazepínicos mais prescritos foram a fluoxetina e o diazepam, respectivamente. Verificou-se, também, que a terapia combinada ultrapassou quatro semanas: na verdade, cerca de 50% dos pacientes utilizaram terapia combinada por mais de um ano.”

“O que esses dados obtidos sugerem?”, continua a pesquisadora. “Que a utilização de antidepressivos não está seguindo caminhos racionais. Essa forma de tratamento praticada para a depressão deve ser reavaliada, especialmente o longo tempo de terapia combinada, que não corresponde às evidências científicas de benefício e ainda expõe os pacientes a riscos desnecessários.” Algumas das sugestões que ela propôs incluíram, além da reavaliação do tempo de terapia combinada, a capacitação daqueles que prescrevem e também a educação dos próprios pacientes.

Com base na dissertação “Uso de antidepressivos e benzodiazepínicos no Sistema Único de Saúde de Porto Feliz-SP”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Luciane Cruz Lopes e aprovada em 26 de agosto de 2011.

Acesse a pesquisa aqui.

Para saber mais: benzodiazepínicos

Benzodiazepínicos (também chamados de BDZs) começaram a ser utilizados como medicamentos ansiolíticos (para tratar a ansiedade), hipnóticos (para tratar a insônia) e miorrelaxantes (para promover o relaxamento muscular) na década de 1960. Hoje eles estão entre os fármacos mais utilizados em todo mundo; as estimativas apontam que, no Ocidente, algo entre 1% e 3% da população já o tenham consumido por períodos superiores a um ano e que o seu consumo dobre a cada cinco anos. O diazepam é o principal derivado dos benzodiazepínicos, sendo o princípio ativo de cerca de 50% dos psicoativos prescritos no Brasil. “A insuficiente capacidade da sociedade moderna de suportar o estresse, a velocidade de introdução de novos fármacos no mercado e a pressão propagandística crescente da indústria farmacêutica podem ter contribuído para o aumento da procura pelos benzodiazepínicos, além dos hábitos inadequados de prescrição por parte de médicos”, lista Fulone.

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