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Espetáculo 'Vereda da salvação' é para os fortes

18 de Janeiro de 2019 às 08:06

Joaquim, personagem de Caio Mancini, traz à tona questões envolvendo o fanatismo religioso - Foto: Henrique Paschoal/Divulgação

Logo ao passar pela porta, a iluminação amarelada do ambiente convida o público ao silêncio. A primeira cena de “Vereda da salvação” está posta e o ator ali, à espera da entrada do último espectador para dar vida a Manoel. Não há separação. O público, apesar de ficar sentado, aparentemente apenas para assistir, já pisou no feno, e está dentro do cenário. Faz parte da peça, mas cada qual terá seu modo de recebê-la. O enredo é para os fortes e o espetáculo também: são duas horas de duração, sem intervalo. Mas conferi a pré-estreia e posso dizer que esse trabalho prende a atenção de tal forma, que quando a gente menos espera, chegou ao fim. Se você ficou interessado, a estreia é nesta sexta-feira (18), às 19h, no Teatro Escola Mario Persico. Trata-se de um espaço de teatro independente, com capacidade para 50 pessoas.

Em meio a bambus, cestas de vime e gaiolas, a história acontece. Os personagens, que trabalham em fazendas, levam uma vida de sofrimento, privações e medo de pecar. O fanatismo religioso é evidente, mas o texto, escrito pelo dramaturgo brasileiro Jorge Andrade, proporciona vários tipos de leitura. Se o olhar se mantiver voltado à parte religiosa, algumas conexões podem ser feitas, e nesse sentido a peça propõe uma reflexão sobre o quanto devemos depositar nossa confiança em um líder espiritual e as consequências disso. Vem à mente casos como o do médium curandeiro João de Deus e do guru Sri Prem Baba, para citar os mais recentes, e também o de seitas que de tempos em tempos ocupam manchetes nos noticiários, por promoverem o suicídio coletivo. Aliás, a peça é baseada em um fato real. Foi inspirada em um episódio ocorrido na cidade de Malacacheta, no sertão de Minas Gerais.

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Mas o enredo não é fechado e expõe outras questões. Mostra a facilidade com que é possível manipular pessoas, principalmente quando se tem um conhecimento a mais. Na peça, o líder religioso Joaquim (do ator Caio Mancini) sabe ler e consegue “traduzir” a bíblia para todos.

Tem também o viés do fanatismo. Os olhos vidrados de Joaquim e sua convicção sobre os ensinamentos de Deus assustam, assim como as tantas pessoas que estão ao nosso redor, e acreditam cegamente nas verdades que querem, defendendo-as com rigor nas redes sociais.

O que chama muito a atenção na peça são as mães. Duas mães. E o que elas são capazes de fazer por seus filhos. São mulheres fortes, marcantes. Uma delas é a Dolor, interpretada por Valéria Nastri. Aliás, tudo o que acontece ali, só acontece por causa dela. Não dá para dizer por culpa dela. A palavra mais adequada é proteção. Tudo o que essa mãe quer é proteger o seu filho. E é o amor de mãe que também leva Durvalina, de Paulo Cesar Oliveira, a ser dura com a própria filha.

Jogo de imagens, luzes e palavras

A peça também pode ser “lida” por seus arquétipos e simbolismos. Entre eles estão a esfera que Manoel carrega, como se levasse o peso do mundo em suas costas, e a belíssima imagem do cordão umbilical formado entre Dolor e Joaquim. O espetáculo também poderia ser definido pelo uso constante das palavras demônio, pecado, dor, perdão e Deus. Ou ainda pelo jogo de luzes, que torna a cena poética, por vezes melancólica e em alguns casos sombria.

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Chama a atenção a entrega dos atores da Cia. Clássica de Repertório em cena. Alguns destaques merecem ser mencionados, por sua força de expressão: a Artuliana de Gabriele Clemente (aliás, ela canta em cena e que voz a dessa moça); a resistência física de Manoel, feito por Jefferson Pereira; o olhar hipnotizado/obcecado de Joaquim, do Caio Mancini; o sofrimento rasgado de Dolor, de Valéria Nastri; a mãe ofegante da corcunda Durvalina, de Paulo Cesar Oliveira; a crédula Conceição, de Alexandra Dias, que se faz notada pelos seus trejeitos; e a visível loucura e/ou trauma de Adão, do Júlio César.

Os atores comentaram, no final da peça, que para eles foi um desafio, mas para o público também é. Isso porque o espetáculo obriga cada um a se rever, a olhar para si mesmo. Até que ponto você acredita cegamente em algo, como Joaquim? Até que ponto você é manipulado ou manipula as pessoas? Até que ponto, você que é mãe, está disposta a defender seu filho? Até que ponto somos nós mesmos ali, em cena?

Espetáculo é resultado do trabalho feito na oficina Ator em Construção

Dolor, interpretada por Valéria Nastri, é uma das mães fortes do enredo - Foto: Henrique Paschoal/Divulgação

De acordo com Mario Persico, que assina direção, cenário e iluminação da peça, “Vereda da salvação” é resultado de uma oficina do projeto Ator em Construção. Foram ao todo três oficinas de teatro, dirigidas por Mario Persico, Tiske Reis e Marcos Sanson, que resultaram em espetáculos. “Vereda da salvação” é o primeiro a ser apresentado ao público.

As oficinas foram gratuitas e voltadas a todos os interessados. Para participar, bastava se inscrever e passar por entrevista. Isso foi possível porque o projeto Ator em Construção foi financiado pela Prefeitura, por meio da Secretaria da Cultura (Secult), com a verba de R$ 30 mil oriunda do Fundo Municipal de Cultura (FMC).

Foi um ano de preparação. A oficina contou com apostila onde foram abordados temas como ética, corpo no teatro, estética da voz, história do teatro, história do teatro brasileiro, filosofia, jogos teatrais, literatura e palco e até exercícios de língua portuguesa. Também foram convidados profissionais para ministrarem workshops.

Sobre o resultado desse processo, que durou um ano, Mario se diz satisfeito. “Para mim foi um divisor de águas mesmo. Talvez eu tenha aprendido mais do que eles [os participantes da oficina] porque me obrigou a pesquisar para dirigir. Esse texto é muito difícil. Então ter enfrentado isso com eles, e ver um resultado satisfatório, foi um orgulho. Foi com certeza o texto mais difícil que já fiz.”

“Vereda da salvação” estreou em 1964 pelas mãos de Antunes Filho e é considerada um marco da dramaturgia nacional. “A peça estreou na segunda fase do TBC [o Teatro Brasileiro de Comédia] e teve de ser retirada. Ficou só um mês em cartaz. Se a gente [do teatro independente] não monta esse tipo de peça, ninguém monta, teatro comercial não monta”, afirma Persico. A opção pelo texto de Jorge Andrade -- conhecido do público em geral por ser autor da novela “Os ossos do Barão”, exibida pela Rede Globo na década de 1970, e pelo SBT na década de 1990 --, foi por admirar o trabalho do dramaturgo e pelo desafio, já que não tinha montado nada dele ainda.

Na análise de Mario, apesar de ser uma obra da década de 1960, a peça está bastante atual. “Infelizmente. Essa alienação das pessoas mostrada na peça não está tão distante dos dias de hoje. Acho necessário tocar nesse assunto”, diz. Além dos atores já citados, integram o elenco Math Caruso, Rary Owen, Giulia Palazzo, Gustavo Moreno, Sandra Guaré, Wellinton Firmino, Mario Sergio Bacetti, Lucas Reis, Yller Campioni, Irene Meira e Carol Caçador.

Serviço

“Vereda da Salvação”

  • Estreia nesta sexta-feira (18), 19h
  • Teatro Escola Mario Persico (rua da Penha, 823)
  • Ingressos R$ 20 (valor inteiro) ou R$ 10 (atores, professores e aposentados)
  • Indicação etária 14 anos
  • O local tem escadarias. Como não tem intervalo, é aconselhável levar garrafinha de água.

Galeria

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