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Filmes da Netlix: ‘Um marido fiel’ (parte 5 de 5)

O discurso da "realização de si mesmo" e do "sucesso de vida" leva a uma estigmatização dos incapazes

28 de Outubro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Um marido fiel
Um marido fiel (Crédito: Reprodução)

No artigo da semana passada lancei uma pergunta: Por que tantos casais do filme se separam? Para respondê-la, comecei escrevendo que o neoliberalismo das últimas quatro décadas determinou um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência e que o indivíduo se torna empresário de si próprio. “A corrosão dos laços sociais traduz-se pelo questionamento da generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz parte da reciprocidade social e simbólica”, afirmam Dardot e Laval no livro “A nova razão do mundo” citado na semana passada.

O discurso da “realização de si mesmo” e do “sucesso de vida” leva a uma estigmatização dos incapazes de aquiescer à norma social de felicidade proporcionada pelo consumo de produtos. O sujeito que não aguenta a concorrência é julgado um ser fraco, dependente, porque incapaz de se tornar “empreendedor”.

Lacan afirmou que o discurso do mercado promete a salvação da vida humana, a felicidade, por meio do consumo de objetos. O indivíduo tem a ilusão de que no novo objeto ou no próximo parceiro encontrará aquilo que supostamente lhe falta. É uma forma de escravidão pelo mercado que vem camuflada como liberdade de escolha e que leva parte das pessoas à inadimplência, ao assumir dívidas impagáveis. A depressão psicológica que hoje encontramos em todas as classes sociais e idades decorrem, na maioria dos casos, pela constatação, pelo indivíduo, de sua insuficiência e de sua incapacidade de se superar cada vez mais como empresário de si mesmo. O “fracasso social”, a incapacidade de consumir, é visto como uma patologia.

Já em 1998, em O mal-estar da pós-modernidade, o sociólogo polonês Zigmunt Bauman afirmava que a durabilidade incerta dos vínculos conjugais é sintoma da instabilidade das relações sociais e está ligada à busca sem tréguas pelo prazer, que torna indesejável qualquer relação que impeça o pleno gozo da liberdade pessoal que é naturalmente restringida pelo casamento. É em nome do usufruto da liberdade que os governos neoliberais estabelecem normas de escolhas e condutas dos indivíduos que os forçam a entrar em luta econômica uns contra os outros e a aceitar com naturalidade desigualdades cada vez mais profundas. O indivíduo bem sucedido é o que consome de modo desenfreado e se julga autossuficiente. Indivíduos autossuficientes se mantêm juntos por meio de uma cola social: repulsa de ideologias políticas e econômicas que se empenham na redução das desigualdades, rancor aos mais pobres, aos preguiçosos, aos velhos dependentes, às minorias.

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Voltemos à pergunta: Por que tantos casais do filme se separam? Pelo que vimos, a união conjugal tende a enfraquecer ou se tornar volátil na medida em que os cônjuges afrouxam a solidariedade e a cumplicidade e trazem para dentro de casa os valores neoliberais de competição, autossuficiência, egocentrismo, liberdade individual irrestrita.

Gostaria de repetir o que escrevi na parte 2 desta análise. Se o leitor assistir ao filme tendo em mente o que escrevi sobre amor, não terá dificuldade de encaixar todos os comportamentos dos personagens do filme.

O título do filme em dinamarquês, “Kærlighed for voksne”, pode ser traduzido por “Amor para adultos” e expressa o contraste entre o amor adulto dos personagens e ao amor adolescente de Johan e Martha, ilusório e fantasioso.

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec.