Nelson Fonseca Neto
A arte de contar
Passei muitos anos sem me interessar por biografias. Lia uma ou outra como complementos para compreender melhor a obra de um autor. Não as encarava como textos notáveis. Só um exemplo: lá no começo dos anos 2000, mergulhei fundo na obra de Dostoiévski. Não preciso dizer que o universo russo do século 19 estava distante de mim. Enfrentei Dostoiévski com a ajuda da monumental biografia escrita por Joseph Frank.
Recentemente, voltei à biografia de Dostoiévski. Foi um choque perceber que o que Joseph Frank fez foi uma obra-prima, algo mais que um mero instrumento para entender Dostoiévski. Analisando as leituras que venho fazendo nos últimos anos, noto que muitas delas são biografias.
Para minha sorte, muitos desses livros se mostraram primorosos. Precisamos combinar uma coisa: não existe vida desinteressante. Cada um de nós carrega sua cota de drama, comédia, tragédia, redenção, epifania. Digo isso porque não gosto quando alguém diz que fulano teve uma vida interessante. Só que é inviável a publicação da biografia de bilhões de pessoas. Então a gente vai se contentando com algumas migalhas.
Vou falar, bem por cima, dos biografados que encarei recentemente: Noel Rosa, Elizabeth Bishop, Franz Kafka, Charles Lindbergh, James Joyce, Jack Kerouac, Elvis Presley, Montaigne. Alguém mais atento dirá: meio sinuoso o trajeto do cronista, não? Concordo com entusiasmo. Linha reta não é o meu negócio.
Ainda estou sob o efeito da biografia de Kafka, escrita por Reiner Stach. Ela foi merecidamente aclamada como um dos grandes feitos dos últimos anos. Lá fora, foi publicada em três volumes. Aqui no Brasil optaram por ignorar o primeiro volume, que trata da infância e da juventude de Kafka. Por que o que Reiner Stach fez foi estupendo?
Em primeiro lugar: a escolha do protagonista da biografia, o singelo Franz Kafka. Sejam honestos: vocês conseguem imaginar Kafka tendo uma existência trivial, comendo, bebendo, amando, indo pra farra, malhando, essas coisas? Para mim, até pouco tempo atrás, não era fácil imaginar. Culpa dos textos malucos do Kafka. Reiner Stach pôs a bola no chão e nos mostra um Kafka próximo, e não uma entidade.
Em segundo lugar: o casamento do rigor na pesquisa dos documentos com a leveza narrativa. Eu acho que não estou delirando ao dizer que o universo kafkiano é dos mais sombrios e grotescos. Na verdade, tudo em torno de Kafka é sombrio e grotesco. E não é que Reiner Stach consegue contar as coisas com humor calibrado e referências ao nosso tempo? Tem uma parte deliciosa que trata de um tipo de spa que Kafka frequentou. O proprietário era uma celebridade do estilo de vida saudável. Vários produtos eram lançados com o selo do spa. Para o leitor sentir o drama, Stach faz uma ponte com os dias de hoje e a profusão de alimentos com as chancelas “bio” e “fit”.
Em terceiro lugar: a criatividade. A boa biografia é factual, mas preenche as lacunas com imaginação. Vocês sabem o que estou pensando neste momento? Impossível saber, a menos que eu o diga, e há uma chance grande de sair uma lorota. Imaginem então lidar com a vida de uma pessoa.
É por essas e outras que uma boa biografia é também uma obra de arte.