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Nelson Fonseca Neto

Passaporte apreendido

06 de Junho de 2025 às 22:55
Cruzeiro do Sul [email protected]
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. (Crédito: REPRODUÇÃO)

Já disseram que ler é viajar sem sair do lugar. Passo boa parte da minha vida lendo e acho um porre esse tipo de frase melosa. Não esperem aqui uma crônica sobre o mundo maravilhoso da literatura. Peço desculpas pelo jeito abrupto de começar o papo de hoje.

Olha, bateu forte a tentação de falar que, com os livros, eu conheço a Rússia e outros confins. Ainda bem que passou e eu botei a cabeça no lugar. Tem muita gente mais capaz escrevendo sobre as delícias dos livros. Mas eu não posso negar que, com as leituras, algumas cidades foram ganhando um quê de encantamento na minha cabeça.

Não gosto de viajar. É o casamento da preguiça com o apego que tenho às coisas familiares. Ousadia não é o meu nome, e o Garfield é uma referência para mim. Ouço pessoas próximas empolgadas com a próxima viagem das férias e penso: que guerreiros! Mas voltemos às cidades que ganharam contornos míticos na minha cabeça.

Baltimore, nos EUA, é a campeã. Sei bem como começou a parada. Na casa dos meus pais tinha um livro, da Editora Abril, de capa preta, com alguns contos do Edgar Allan Poe. Antes de ler os contos, eu já achava sombria aquela edição, que trazia umas ilustrações de cemitério. Tinha também uma página que tratava brevemente da vida de Poe. Fiquei sabendo que ele morreu em Baltimore, depois de ter sido encontrado na sarjeta.

Isso no meio do século 19. Se você já teve vontade de pesquisar um pouco a respeito, sabe que as cidades dos EUA no século 19 não eram lá muito aprazíveis. Eu devia ter uns doze anos quando me deparei com o livro de contos do Poe. Nunca mais tirei da cabeça a imagem dele agonizando numa quebrada de Baltimore, que se tornou, para mim, o símbolo da cidade casca-grossa.

Ao longo desses anos todos, devo ter visto alguns filmes ambientados em Baltimore. Também devo ter lido reportagens a respeito de coisas da cidade. Mesmo sem nunca ter chegado perto de lá, Baltimore é forte na minha imaginação. De vez em quando, entro no Google Street View para ver se estou certo.

Não tenho vergonha de dizer que Baltimore virou mania para mim. Tudo de lá me interessa. Algo parecido acontece com Fairbanks, no Alasca, mas falo disso num outro momento. Quando as séries de streamings começam a bombar algum tempo atrás, o pessoal que manja da coisa falava que “The Wire”, sobre o mundo do crime em Baltimore, era uma obra-prima. E é mesmo, e olha que eu sou meio cabreiro com séries.

O eixo intelectual da série é David Simon, repórter investigativo de Baltimore, que ficou um ano acompanhando o trabalho da polícia da cidade. O resultado está num dos livros mais legais que já li: “Divisão de homicídios”. É jornalismo de primeira grandeza, é esplendor narrativo, é trabalho de formiguinha, é observação afiada. E a suprema delícia: páginas e mais páginas de Baltimore, minha cidade imaginária preferida.

Minha gente, a soma de Google Street View com livros fez com que palavras como “passaporte”, “aeroporto” e “hotel” entrassem no terreno do folclore para mim. Coitada da Patrícia e do João Pedro.