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Nelson Fonseca Neto

Terra arrasada

22 de Maio de 2025 às 22:50
Cruzeiro do Sul [email protected]
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. (Crédito: REPRODUÇÃO)

Moro no centro da cidade, perto da praça 9 de Julho, e gosto de caminhar pelas travessas da Eugênio Salerno. A preferência vem do percurso desafiador, com subidas e descidas, e da beleza de muitas das casas daqueles quarteirões. Infelizmente várias casas lindas foram demolidas ou estão com placa de “vende-se”.

Sinto-me dividido ao me deparar com essa situação. Há um lado meu que compreende que a vida das cidades é dinâmica, que é impossível congelar o tempo, que o apego exacerbado ao passado pode ser mórbido. Mas há também um lado que lamenta a substituição de casas charmosas por prédios que abusam do vidro em suas fachadas.

Não quero dizer aqui que sou um exemplo de equilíbrio. Não sou e já digo sem titubear: meu amargor, nesse assunto, predomina. Não volto eufórico das caminhadas que faço aqui pelo bairro. Volto lamentando o estado das coisas.

Olho para uma casa ou para a janela de um apartamento e fico imaginando a vida das pessoas que moram ali. O curioso é que, quando observo uma casa, as histórias saem maiores, quase romances. Quando fico bisbilhotando janelas de apartamentos, surgem contos, cenas mais aceleradas.

Agora consigo reconhecer que em outras épocas eu preferia a observação de apartamentos. Eu gastava um tempão vendo as pessoas se movimentando de um cômodo a outro. Sempre morei em apartamentos, então acho que fui praticando o ofício ao longo dessas décadas todas. Quando vivi um tempo em São Paulo, uma das minhas alegrias era ver as centenas de janelas acesas ao meu redor. Por sorte, eu morava no décimo andar e a vista dali era espetacular.

Desde quando retomei as caminhadas, coisa de uns três ou quatro anos atrás, venho me dedicando mais às casas. Ando bastante, e então acho que estou familiarizado com as casas do centro da cidade. Quem conhece Sorocaba sabe que tenho em mente um centro expandido, algo que abraça a parte baixa da rua da Penha e avança para a Eugênio Salerno. Quem tiver olhos abertos para a beleza perceberá casas e prédios belíssimos na região.

As casas que mais chamam minha atenção não são necessariamente as mais antigas. Claro que as mais antigas têm um quê a mais, mas me contento com casas mais novas que carregam consigo algo que eu considero crucial: o mistério. Casa boa, para mim, não pode revelar tudo logo de cara. É por isso que não dou bem com vidros e projetos que misturam sala com cozinha, o tal “conceito aberto”. As casas que me arrebatam não têm janelões. Quando muito, ao passar diante de uma delas, vejo uma luz amarelada escapando pela cortina. Minhas casas preferidas são escuras e certamente abrigam vários cômodos.

Lógico que essa minha casa ideal é prato cheio para enredos meio góticos que vou criando para passar o tempo. Nunca são histórias amenas, engraçadas. Sempre são enredos de traição, vingança, remorsos, mortes atrozes. Quando uma casa dessas é derrubada, parece que suprimiram personagens queridas.

Aí eu vejo esses prediões envidraçados que vão tomando o lugar das minhas casas de estimação e vou tentando criar histórias para os moradores dos apartamentos. Nada sai de bom disso. Preciso me adaptar aos tempos de hoje e lidar melhor com personagens degustando vinho na varanda gourmet.