Nelson Fonseca Neto
Rolê de domingo
O dia promete: amanheceu nublado e frio. É domingo e a dúvida surge quando boto a cara na rua: puxar ferro na academia do clube ou bater perna por aí? Menos de um minuto depois, o vento batendo no rosto, a segunda opção ganha de lavada.
Sair a esmo ou valer-se de rota definida? Rota definida. Descer a São Bento, subir a Nogueira Padilha, chegar ao Quinzinho e voltar. Uma boa pernada. O que ouvir? (Maldito vício de só sair com fone de ouvido.) Podcasts sobre a conjuntura brasileira? Música?
Tudo tem seu tempo determinado. O clima está ótimo, não é sempre que bate o frio por aqui. Céu cinzento, então, nem se fala. É a música que irá embalar os passos do andarilho de domingo.
Som na caixa! Lester Young e Oscar Peterson mandando ver. A primeira música rola bem no topo da São Bento, em frente à igreja. É o meu ponto favorito da cidade. De lá eu vejo aquela descida que sempre será o cenário mais lindo de todos os lugares do mundo. Fique à vontade para discordar.
Young e Peterson soltam uma música suave, tangenciando a melancolia. Os ouvidos influenciam os olhos? Cada vez mais penso que sim. Young e Peterson fazem o cenário ficar lírico, comovente. Até as falhas na calçada têm a sua razão de ser. Tudo se movimenta com malemolência. Cada coisa com a sua beleza. Seria diferente com outra música? Certamente sim.
O andarilho de domingo vai descendo rápido e faz aquela curvona logo depois da praça. As músicas vão ficando animadas e viram um banzé bem na hora de cruzar a ponte lá na linha do trem. Cruzar aquela ponte é meio que cruzar um portal do tempo. A Nogueira Padilha tem o tradicional abraçando firme o moderno.
Tem o boteco que parou nos anos 70 e tem a doceria toda moderna. Será exagero dizer que os quarteirões da Nogueira Padilha reúnem a maior concentração do mundo de estabelecimentos que vendem frango assado? O cheiro de frango assado domina a subida longa. Cliente é o que não falta. Uma filinha responsável diante de cada porta.
O andarilho de domingo vai subindo a avenida embriagado pela música, pelo cheiro de frango assado e pela visão de casas interessantíssimas. Algo que sempre será deslumbrante: “a casa que destoa”. Ainda tem disso por aqui. Uma fileira de casas humildes e lá pelas tantas um casarão suntuoso. Ou: várias mansões e de repente uma casinha que parece cenário de novela, do núcleo suburbano. Quem gosta de andar e imaginar caraminholas ao mesmo tempo vai criando uns enredos assaz ousados.
Hora de quebrar à esquerda e dar de cara com o zoológico. Sempre será empolgante virar à esquerda e ver aquele mar de árvores no fim da rua. Isso vem da infância: excursões da escola, passeios com a família. Aquilo ali é conhecido de cor e salteado. Cada curva, onde fica o tigre, o tanque do hipopótamo.
Eu ia falar o “recinto da girafa”, mas nunca teve girafa ali. Engraçado que todo mundo diz ter visto a girafa.
Hora de voltar pro centro da cidade. Almoço chegando. Saem Lester Young e Oscar Peterson e entra Dizzy Gillespie. Animação pura, tudo fica mais colorido, mais agitado, o andarilho sente vontade de correr. Não corre porque ainda tem um pouco de prudência na alma e lembra que tem 46 anos e que correr na banguela detona os joelhos. É de bom alvitre chegar são e salvo em casa pra abraçar a Patrícia e o João Pedro.
A jornada foi de respeito, mas nem deu pra suar, por causa do frio. Agora o lance é pensar no almoço. E é lógico que fica o lance meio místico: a vida tem lá seus encantos.