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Nelson Fonseca Neto

Balinha

26 de Abril de 2024 às 00:13
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Eu estava voltando a pé para casa no sábado passado, perto do meio-dia. Eu vinha de um restaurante e carregava umas quentinhas para o almoço. Resolvi pegar no bolso uma balinha que recebi de cortesia na hora de pagar a conta. Era de doce de leite, e isso tem um apelo muito forte para mim. Tentei ser cuidadoso e não inclinar demais as sacolas com as quentinhas. Enquanto esperava o sinal fechar para poder atravessar a rua, tentei abrir a balinha. Lógico que foi uma operação frustrante.

Naquele momento de frustração, a musa soprou em meus ouvidos: escreva a respeito. E eu: a respeito do quê? Da bala de doce de leite? Do meu jeito desengonçado? Do papel que envolve a balinha? A musa foi embora, e eu achei por bem tentar cercar as possibilidades que surgiram. Então não esperem um texto com eixo bem definido.

Curioso como o tempo voa para algumas coisas e se arrasta para outras. Outro dia mesmo eu estava comentando com os meus alunos sobre as parcas opções que tínhamos quando não queríamos ver a aula. Recorríamos a bilhetes com idiotices, papelzinho com caricatura, e não ia muito além disso. Quando estava no ensino médio eu era meio bitolado por futebol. Pra passar o tempo quando batia o tédio na escola eu ficava desenhando campinhos de futebol ocupados por jogadores do São Paulo. Eu bem que criava algumas táticas interessantes. Hoje a moçada tem à disposição distrações que a minha geração não vislumbrava mesmo nos devaneios mais psicodélicos. Mas eu não quero falar a respeito disso agora.

Eu dizia que o tempo voa para algumas coisas e se arrasta para outras. Voa para as telecomunicações e para o entretenimento e se arrasta para o mundo das balas. Evidente que hoje há muito mais opções aos devotos do açúcar. Eu mesmo, que faço parte da seita, ignoro muito do que vem surgindo nos últimos anos. Sempre é motivo de deslumbramento topar com uma embalagem toda coloridona no supermercado. Houve, portanto, incremento na quantidade, mas permaneceu o incômodo das embalagens das balinhas.

Toda vez que tento abrir uma balinha, penso: o problema está em mim. É inacreditável o que acontece. Pego uma balinha e tento abrir no lugar indicado pelo fabricante. Meus dedos escorregam, e eu fracasso. Só consigo abrir dando uma rasgadinha com os dentes, o que, convenhamos, é meio arriscado do ponto de vista da microbiologia. É frustrante ser casado com uma mulher que é craque na arte de abrir embalagens que aporrinham a minha vida. Enquanto eu bufo com as mãos frenéticas, a Patrícia abre em dois movimentos. Sempre ela faz isso e lança um olhar de sarcasmo em minha direção.

Até já prometi a mim mesmo somente tentar abrir balinhas na segurança do lar, em ambiente controlado. Quebro a promessa todos os dias da minha existência. No carro eu realmente evito: o trânsito já está suficientemente bagunçado e não precisa da minha humilde colaboração. Mas eu insisto em fazer a coisa errada enquanto caminho.

Isso tudo pra dizer que a minha gula, casada com a minha imperícia, fez com que a sacola das quentinhas se inclinasse perigosamente. Tinha coisa com molho ali dentro. Percebi o fundo da sacola manchando-se com o vermelho do molho, uma coisa meio Hitchcock. A balinha caiu da minha mão. Bateu uma raiva. Restou escrever este texto. Culpa da musa que fala as coisas pela metade.