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Nelson Fonseca Neto

Figurinha carimbada

11 de Abril de 2024 às 22:46
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Tenho a mania de ficar desbravando a memória antes de dormir. Visito várias épocas da minha vida. Não tenho uma fase preferida. As coisas vão acontecendo sem método, ao sabor do momento. E isso é bom.

Numa dessas visitas ao passado, surgiu a imagem de um álbum de figurinhas de Fórmula 1. Corria o ano de 1986. Eu tinha nove anos. Faz tempo que o álbum desapareceu, mas lembro perfeitamente dos detalhes de suas páginas. Ainda bem que existe a internet, e eu tirei a prova. Numa dessas páginas de fanáticos, revi as páginas de 1986. Eu não estava errado.

Colecionar figurinhas foi uma das minhas paixões mais exacerbadas. Agora me dou conta do seguinte: 1986 deve ter sido um ano meio puxado pros meus pais. É que, além do álbum da Fórmula 1, havia as figurinhas da Copa de 86, que vinham no chiclete Ping Pong. Ainda hoje várias dessas figurinhas estão guardadas na casa dos meus pais.

Aquelas figurinhas com o rosto dos jogadores eram sensacionais. Não havia álbum. Eram só as figurinhas mesmo. O papel era fininho. A composição entre foto de jogador e bandeirinha do país era elegante. Aquele papelzinho tinha o tamanho perfeito para o jogo do bafo.

Havia um mercado, entre as crianças, que sabia atribuir valor àquelas figurinhas. Pode ser que a memória esteja me traindo, mas o Platini valia muito. Assim como o goleiro da Alemanha. Falando no goleiro da Alemanha, aconteceu algo muito interessante naqueles idos de 86.

Meu pai tinha consultório em Itu. Lá, ele comprou uma caixa fechada contendo dezenas de chicletes Ping Pong. Em casa, fomos abrindo os chicletes para conferir as figurinhas. Foram aparecendo várias repetidas do goleiro da Alemanha, o Schumacher. Parecia coisa dos sonhos mais delirantes. Disto tenho certeza: ninguém na escola onde eu estudava tinha visto a figurinha do Schumacher. E lá vou eu, no dia seguinte, com seis ou sete rostos do Schumacher.

Primeiro, o espanto. O pessoal olhando para algo que pertencia ao domínio da lenda. Depois, uma mistura de escambo com capitalismo operando a pleno vapor. Estabeleci uma cotação para o Schumacher. Triste dizer isso, mas acho que enfiei a faca na turma. Naquela época as transações eram na base da troca, sem grana envolvida. Não lembro o valor exato que atribuí ao Schumacher, só sei que voltei pra casa naquele dia com a mochila transbordando de figurinhas. Guardei dois Schumachers comigo. Nunca se sabe o dia de amanhã.

Depois foram surgindo outras figurinhas. Destaque para o álbum da Copa União. Os craques de cada time vinham com um carimbinho estiloso, no canto direito inferior. Daria pra fazer uma arqueologia da infância e da adolescência a partir das figurinhas colecionadas.

Vou me dando conta, agora, de uma coisa: os adultos interferiam muito pouco nos processos de colecionar figurinhas. Claro, eles eram os provedores, mas havia uma fronteira. Olha que quem está escrevendo isso tem pais que sempre foram maravilhosamente presentes e acolhedores. Hoje eu vejo pais se intrometendo em divergências entre crianças, envolvendo figurinhas, na época da Copa do Mundo. Vejo também pais promovendo eventos de trocas de figurinhas, com a empolgação de moleques. Sempre acharei esquisitas essas intromissões. Venho de outro tempo.

Paremos por aqui. Não gostaria de encerrar esta crônica com amargura.