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Nelson Fonseca Neto

A traição do destino

28 de Março de 2024 às 23:05
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Um dia, quando eu tinha vinte anos, alguém perguntou se eu me tornaria um senhor quadrado ou um senhor antenado com a juventude. Naqueles tempos, lá se vão mais de vinte e cinco anos, eu cravei: totalmente antenado com a juventude. Minha ideia era ser uma espécie de Evandro Mesquita. Quebrei a cara.

Se você olhar para a casca, talvez diga que me tornei meio antenado com a juventude. Calça jeans, camiseta, tênis de corrida, essas firulas. Mas parou nisso. O miolo está cada vez mais quadrado. Mais quadrado nos detalhes, nas miudezas, nas manias, nos cacoetes. Acompanhem.

Não tenho mais paciência com barulho. É a motoca que passa acelerando com o escapamento aberto, é a motona invocada que custa os olhos da cara, é o fulano que fala alto no celular, é a televisão com o volume elevado na sala de espera, é a conversa efusiva das pessoas na padaria, é o carro de som anunciando sei lá qual sorteio, é o barulho da reforma aqui perto. A lista é enorme. A poluição sonora é o mal que muita gente ignora.

Vou arrastado a festas. Não era assim. Eu não era exatamente um festeiro convicto, mas me empolgava em algumas ocasiões. Agora isso acabou. Nada contra as pessoas que estão na festa. Várias delas são muito, muito queridas. O problema é todo mundo junto. Como diria o sábio: eu adoro pessoas; mas uma de cada vez.

Ainda dá para encarar, a partir de muito pensamento positivo, festas agendadas para o horário do almoço. Tudo se complica se são à noite. Ter filho pequeno tem um peso nisso, claro. O pai quadrado aqui acredita que criança tem que dormir cedo. (Acabo de ler o que acabei de escrever e penso no Neto jovem. O Neto jovem era defensor da farra do boi no quesito horário.)

Claro que penso no João Pedro, mas não quero que ele sirva de muleta para a minha aversão a festas noturnas. Meu relógio biológico vem passando por algumas adaptações. Levei boa parte da minha vida indo dormir depois da meia-noite. Foram várias madrugadas vendo filmes ou lendo compulsivamente.

Agora, quando o relógio vai se aproximando das onze horas, os bocejos entram em cena. Tudo vai ficando meio embaralhado nas páginas que estou lendo. Esqueço o que havia lido cinco minutos antes. Hora de o guerreiro render-se ao sono.

Quando alguém fala que a festa começará perto das nove da noite, penso: por que fazer uma coisa dessas? O melhor lugar para se estar à noite é no berço. Sorte que amigos e familiares não inventam moda de marcar encontros em horários inóspitos. Tudo bem, tem Natal e virada de ano, mas aí a gente tem vários meses para se preparar.

Outro ponto que tem sido delicado: alimentação. Eu era mais ousado, bem mais ousado. Acho que bati no limite da imprudência em muitos momentos. Encarava sem titubear os lanchões da madrugada, nos carrinhos da vida. Não parava para pensar na procedência dos ingredientes ou se eles estavam adequadamente armazenados. Quanto mais colossal o lanche, melhor.

Agora valorizo o minimalismo de um queijo quente ou de um pão com manteiga. Sou capaz de escrever um poema em louvor ao pão de queijo, a melhor invenção do homem depois do futebol e do fone de ouvido.

Se você encontrar comigo na rua, não se engane: o cara grandão de camiseta está na casa dos oitenta anos.