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Nelson Fonseca Neto

O aventureiro

14 de Março de 2024 às 22:30
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Duas semanas atrás eu estava lendo com os alunos alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade. Os textos escolhidos não estavam alinhados cronologicamente, e eu segui o seguinte critério: poemas com fortes elementos narrativos.

Drummond é merecidamente conhecido como um dos grandes poetas brasileiros. Isso, todavia, acaba eclipsando um ponto fundamental: ele também foi um grande contador de histórias. Várias de suas crônicas são contos refinados. Muitos de seus poemas são histórias, em verso, de primeira grandeza.

Os alunos estavam boquiabertos com “Caso do vestido”, poema narrativo com várias vozes. Foi a mesma reação que eu tive há muitos anos. Aproveitando o embalo, falei de algumas composições do Bob Dylan. Naquelas músicas a gente também encontra preciosidades narrativas.

Aí eu subi a serra. Isso sempre acontece quando falo do Bob Dylan. Minha empolgação foi tamanha, que um dos alunos disse que eu tinha um jeito pacato demais para ser devoto de Bob Dylan. É que Dylan é pé na estrada, vento no rosto, passar a noite em espeluncas, ver tretas, sofrer doidamente. E é verdade.

É muito doido este mundo. Um dos meus ídolos mostra a vida que eu não levo. Mais: a vida que me dá uma preguiça danada só de pensar em fazer um tiquinho daquilo. Babo ovo pro Bob Dylan, mas tenho uma rotina mansa. E digo isso com orgulho.

Aí, voltando pra casa depois da aula, enquanto o trânsito aporrinhava a paciência de qualquer santo, pensei em artistas que admiro. Vários deles francos defensores da vida a mil por hora. Dylan, Bruce Springsteen, Anthony Bourdain, Orson Welles, Miles Davis, Keith Richards, Hunter Thompson, Norman Mailer, Balzac, Dickens, Tolstói. Um pessoal não muito bom na arte de ficar na moita.

Já fui um pouco mais agitado. Pouca coisa mais agitado, pra dizer a verdade. Nada de muito revolucionário. Eu, vejam que ousado, topava facilmente jogar bola perto das onze da noite. Ou ficava numa boate até quase cinco da manhã. Ou ficava acordado lendo até de madrugada.

Agora, a vida trepidante acontece às sextas-feiras: Patrícia e eu comendo chocolate depois que o João Pedro pega no sono. Chance zero de tentar dormir depois da meia-noite. O corpo não dá mais conta. A sinusite ataca só de pensar em caipirinha. Vodca eu beberia somente sob forte ameaça. Bom deixar claro: não por achar pecado ou coisa do tipo. O corpo não dá mais conta. Só isso mesmo.

Vivo isso e volto, sempre que posso, aos primeiros capítulos da autobiografia do Keith Richards. Aquilo é prosa luminosa, aguerrida, engraçada. Leio as peripécias enquanto o ar condicionado do quarto faz um zumbido que acalenta. Paro um pouco de ler, incomodado com a moto que acelera numa avenida aqui perto do apartamento.

De manhãzinha, leio umas entrevistas que o Dennis Johnson deu. Johnson é outro ídolo literário. Eu deparo-me com coisas tenebrosas. Vou a seus contos e encontro a voz dos destruídos. A Patrícia está na cozinha, tomando café. Dou uma passada no quarto do João Pedro. Ele está dormindo de um jeito muito engraçado. Na cozinha, como uma maçã. Bato papo com a Patrícia. Tiramos sarro de umas pessoas meio malas. Volto ao quarto. Volto aos contos de Denis Johnson. O avesso do que vivo.

Levando o João Pedro pra escola, ouço umas besteiras no rádio. Pessoas dizendo uns absurdos que deveriam ser constrangedores em tempos normais. Vou compondo mentalmente uns versos bem duros. Olho pra trás e faço umas graças pro João Pedro. Vamos cantando umas musiquinhas do Palavra Cantada.Uma boa forma de tocar o barco.

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