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Nelson Fonseca Neto

Vocação

No intervalo entre uma e meia e três da tarde, sou tomado por pensamentos sombrios e vejo a vida a partir dos piores ângulos. Depois melhora

15 de Fevereiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Sou um homem de muitos defeitos. Não me comovo facilmente. Implico com ninharias. Evito festas. Não sou de dar gargalhadas. Sou bagunceiro. Não sei lidar com furadeiras e chaves de fenda. Não sou aventureiro. A lista é longa.

Para não parecer que estou exercitando a falsa modéstia, solto aqui uma qualidade que julgo possuir: reconheço rapidamente sinais de picaretagem ou de coisas fadadas ao fracasso. Longe de mim chamar isso de dom. Eu apenas tenho olho bom para as besteiras da vida.

Vou contar um caso aqui, mas antes preciso desenhar o cenário. Eu abomino duas coisas nesta vida: calor e começo de tarde. Como estamos no Brasil, quase sempre o começo de tarde é infernal. No intervalo entre uma e meia e três da tarde, sou tomado por pensamentos sombrios e vejo a vida a partir dos piores ângulos. Depois melhora.

Muito bem, tratemos do caso. Hoje mesmo, minutos atrás, bem no intervalo maligno que acabei de mencionar, a Patrícia inventou de mostrar algo que viu na internet. É a propaganda de um repelente artesanal, vegano. Não é um vídeo, é um texto.

A Patrícia me conhece muito bem. Sabe que no começo da tarde eu fico meio atacado, com tendência a soltar opiniões escabrosas, impublicáveis. Lógico que ela resolveu mostrar o lance do repelente artesanal para testar os limites da minha sanidade mental. Há um nome para isso: sadismo. Pior que ela mostra essas coisas com a cara mais séria do mundo.

A Patrícia obteve êxito na empreitada, pois ela queria ouvir justamente o que eu disse sobre a tal propaganda. Não reproduzo as palavras aqui porque a minha imaculada reputação seria conspurcada inapelavelmente. Basta que saber que julguei a propaganda um belo exemplo de picaretagem. E assim voltamos ao segundo parágrafo deste texto, que trata da minha habilidade na hora de detectar a picaretagem ou algo fadado ao fracasso.

Frequentamos a piscina do clube que fica aqui pertinho de casa. O João Pedro parece um golfinho eufórico, é uma delícia ver isso e coisa e tal. Ontem, a piscina estava lotada. Eu tenho a mania de observar as coisas ao meu redor com um grau exacerbado de atenção, sempre em busca de enredos e personagens. Não acho bonito, não me orgulho, mas não consigo fazer de outra forma.

Eis que surge, no topo da escada que dá acesso à piscina, um cidadão de sunga, embriagado, segurando um copo de vidro. A funcionária que controla o fluxo de pessoas disse que ele não poderia descer com o copo de vidro. Indignado, ele mostrou não entender o porquê daquilo. Nessas horas, eu gostaria de ser, ao mesmo tempo, mágico e desenhista. Mágico, para fazer surgir uma lousa ali. Desenhista, para ocupar a lousa com desenhos de pés descalços, cacos de vidro, sangue, pessoas chorando. Assim, o cidadão de sunga compreenderia que embriaguez, copos de vidro e piscina não formam uma boa combinação. Eu, meio paranoico, sei disso desde os, sei lá sete, oito anos de idade. É a tal vocação para detectar algo fadado a dar errado.

Algo parecido ocorre quando me deparo com: pizza de arroz doce (sem comentários); festa open bar (hordas bêbadas tendem a cometer equívocos); rojão (pelo barulho, pela perspectiva de se ter a mão decepada); abadá (o tecido é quente, as estampas são cretinas, sempre tem alguém querendo customizar o tecido); ator mirim (parece sempre algo oriundo de filme de terror); festa retrô dos anos 80 (a nostalgia sempre carrega consigo o risco da morbidez, da necrofilia); fondue (a festa das bactérias); sashimi em casamento (a festa das bactérias, parte 2); piscina de bolinha (a festa das bactérias, parte 3).

Pessimista? Realista? Prudente? Mórbido? Ainda não me decidi. Talvez tudo isso misturado.

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