Nelson Fonseca Neto
Leite derramado
Naquela época não havia internet, e as acomodações eram escolhidas na base da confiança
Nick Hornby, escritor inglês, é um dos grandes nomes da literatura das últimas décadas. Doido por futebol, ele escreveu “Febre de Bola”, merecidamente considerado um dos grandes livros sobre o esporte que tanto mexe com a gente aqui no Brasil. Outro livro muito interessante dele: “Alta Fidelidade”. O protagonista é viciado em listas e encara a sua vida a partir delas. É um barato. Esse jeito de lidar com as coisas acaba inspirando o cronista que ocupa este espaço.
A lista que vocês lerão logo mais trata das coisas feitas tempos atrás e que despertam profundo arrependimento. Quando olho para trás e me deparo com elas, penso: “Que fase!”. Sem mais delongas, a pequena lista do amargo passado.
Primeiro item: ir à praia no Carnaval. Eu era jovem, mas não era empolgado com esse tipo de programa. Agora que aquela fase passou, posso dizer aqui: eu achava que havia alguma peça avariada em mim. É que todos da minha idade ficavam meio alucinados com a perspectiva de ir à praia em bando, ocupando minúsculos apartamentos, comendo mal, dormindo mal, tendo de lidar com baratas e pernilongos.
Naquela época não havia internet, e as acomodações eram escolhidas na base da confiança. Aí já dá para entender o drama. Naqueles dias, a expressão “gato por lebre” era das mais adequadas. Eu via o pessoal empolgado e pensava: “como é possível?”. Mas eu escondia o jogo. Medo de ser esculachado pelos comparsas, essas besteiras.
Imaginem a desgraça multiplicada por mil na época do Carnaval. Ao longo de muitos anos, recusei convites que juntassem praia e Carnaval. Mas teve um ano em que isso foi impossível. A turma com quem eu iria decidiu que o início da aventura se daria na sexta-feira de Carnaval, saindo de Sorocaba no meio da tarde. Quando falaram isso, eu perguntei: “é pegadinha?”. Não era. Tentei dizer que aquele horário era, eu diria, um tanto quanto problemático em termos de congestionamento. Acusaram-me de azedo, de paranoico, de apocalíptico. Foi uma aprazível viagem de doze horas de duração. Não entro nos detalhes dos dias seguintes. Isso aqui não é conto de Edgar Allan Poe.
Segundo item: participar de dinâmicas de grupo. Não sei se a moda passou. Nos lugares onde trabalho hoje não promovem dinâmicas de grupo, o que me deixa enormemente feliz por estar onde estou. Não era assim no começo dos anos 2000. As dinâmicas de grupo eram pragas de gafanhotos. Já estourei bexigas, já fiz cartazes psicodélicos, já fechei os olhos pra imaginar a paz suprema, já tive de resumir aqueles encontros em uma palavra (“pertencimento”, “responsabilidade”, “valores”, “lealdade”). Naquela época eu estava no início da carreira, mais purinho, mais aberto aos experimentos de candidatos a dr. Moreau do ramo dos recursos humanos. Hoje eu teria de ser coagido com um rifle para participar de uma coisa dessas.
Terceiro item: entrar numa boate. Olho pra trás e vejo: um grandalhão (eu) dançando na pista e achando que está abafando; um sujeito (eu) fazendo solos imaginários de guitarra no fim da festa; um cara (eu) indo ao banheiro e se deparando com uma privada entupida; um desavisado (eu) ficando horas na fila para pagar a comanda. Belas ilustrações para a ideia de masoquismo.
Encerramos por aqui. Saibam que os itens que ficaram na gaveta renderiam um “Guerra e paz” do besteirol. Cada um com o épico que merece.