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Nelson Fonseca Neto

Superação

Passei um tempão sendo militante dos clássicos. Eu sempre achava uma brecha para falar de Tolstói ou de Homero

01 de Fevereiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Estou cansado de receber estímulos dizendo que o ser humano não pode ficar parado, que precisa evoluir, ser perfeccionista, um eterno insatisfeito, essas coisas. Passei boa parte da minha vida adulta ignorando essa papagaiada, mas aí, bem avançado no território dos 40, eu me pego dando bola pra essa história de desenvolvimento pessoal. É com enorme felicidade que divido com vocês alguns pontos que mostram o meu aprimoramento.

Conversa com desconhecido no elevador. Por muito tempo, foi um horror para mim. Nunca puxei papo nessa situação. Quando interpelado, minhas respostas eram sofridas, ariscas, protocolares. Hoje constato que as coisas caminharam para algo civilizado. Se estou, no elevador, segurando um livro, consigo dizer sem grandes sofrimentos, caso perguntado, o que estou lendo. Parece pouco, mas é um grande passo para mim.

Diálogo com vendedor empolgado. Antes eu deixava a pessoa falando sozinha. Principalmente quando eu notava que o vendedor tentava estabelecer forte camaradagem comigo. Tem um lado meu, mais compassivo, que leva em conta que o cara está trabalhando, e que certamente a empresa falou para ele ser assim. Mas tinha um lado meu que rapidamente suplantava a compassividade. Hoje consigo me controlar e ser minimamente agradável. Continua sendo sofrido, mas não exponho isso. E o vendedor serelepe toca a vida sem precisar lidar com um cliente emburrado.

Fezes de cachorro na calçada. Parece coisa de comédia, mas não é. Se eu topasse com fezes na calçada, vinham engulhos incontroláveis. Tudo bem quando não havia ninguém por perto. Nada bem quando algumas testemunhas viam um grandalhão se contorcendo inexplicavelmente. Hoje eu vejo um cocô e desfilo indiferente. Isso ajuda bastante naquilo que chamam de qualidade de vida. Caminhar livremente é uma delícia.

Futebol. Até arrebentar os ligamentos do joelho direito, eu dava uma importância, digamos, exacerbada ao esporte. Melhor dizendo: uma importância maníaca. Eu gastava uma parte significativa do meu tempo entrando em contato com os amigos a fim de marcar um jogo. Teve época em que jogávamos às onze horas da noite. Quando não estava na quadra de futsal ou no campo Society, eu devorava programas de debate da rodada ou ficava imaginando esquemas táticos para o time do São Paulo. Isso tudo passou. O futebol ainda é uma paixão, mas devidamente moderada agora.

Literatura. Passei um tempão sendo militante dos clássicos. Eu sempre achava uma brecha para falar de Tolstói ou de Homero. Eram discursos metidos, repletos de empáfia. Basicamente, eu dizia que só os clássicos prestavam, que a vida era mais pobre sem a companhia de Goethe, essas coisas. Hoje eu continuo partidário dos clássicos, mas sem a conversinha chata de doutrinador.

Frutas. Na minha infância e juventude, sempre teve boa variedade de frutas em casa. Meus pais cumpriram bem sua missão. Mas, sei lá o motivo, depois dos 20, praticamente risquei as frutas do meu cardápio. Eu até brincava, perguntando, cheio de cinismo, se Galak era fruta. De uns meses pra cá, as frutas voltaram com tudo. Ir à quitanda tornou-se uma farra.

Livros. Passei muitos anos dominado por um temor místico: não ler inteiro o livro escolhido. Podia ser a maior xaropada da paróquia: eu ia até o fim. Já faz tempo que aprendi a lição. Hoje, se a coisa não me agrada, largo sem culpa. A chatice é imperdoável.

Fazendo um breve balanço, constato, humildemente, que as coisas até que estão caminhando bem. Muito bom poder dividir isso com vocês.

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