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Nelson Fonseca Neto

Devo, não nego

16 de Novembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Eça de Queiroz levou umas pedradas por conta do romance “O primo Basílio”. Foi acusado de sórdido e de plagiador. O “sórdido” veio por conta das descrições das farras na alcova. O “plagiador” porque o romance seria um decalque de “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert. Não vale a pena comentar aqui sobre as descrições consideradas imorais. Podemos explorar a questão numa outra coluna.

Interessa-nos, hoje, a acusação de plágio. Que o leitor tire a prova lendo os dois romances. Certamente ele notará, sim, que Eça foi um leitor atento de Flaubert. O leitor constatará que os argumentos das duas histórias apresentam várias convergências. Mas isso nos permite cravar que o português se apropriou indevidamente da obra do francês?

Não é o caso. “O primo Basílio” é um grande romance. Ali encontramos coisas que somente Eça era capaz de produzir. Uma delas é o humor macabro. Há também a construção de personagens inesquecíveis como Juliana e o conselheiro Acácio. E a caracterização da classe média alta de Lisboa?

Qual a lição que fica? A óbvia: a originalidade pura é impossível. Sempre estamos dialogando com alguém. Digo isso porque um dos livros que li recentemente exemplifica a importância da boa influência. Mais bonito ainda quando o autor faz questão de registrar o quanto deve a X ou a Y. Estou falando de Andrea Camilleri, escritor italiano de romances e contos policiais. (Ele foi além do gênero, mas fiquemos, aqui, com a produção que o tornou famoso.)

Camilleri morreu velhinho, não faz muito tempo. É fácil encontrar no YouTube ótimas entrevistas que ele deu para programas italianos. Gosto especialmente de um documentário no qual Camilleri explica longamente a influência que Georges Simenon exerceu sobre ele.

As histórias policiais de Camilleri são ambientadas na cidadezinha fictícia de Vigata, no sul da Itália. São histórias sempre protagonizadas pelo comissário Salvo Montalbano. Ao longo da série de romances, encontramos a previsibilidade. É que há uma espécie de elenco fixo: Montalbano, seus auxiliares, sua noiva, o promotor, o médico legista, os jornalistas, os mafiosos. Se nos aventuramos na série, ficamos familiarizados com as figuras. Por mais que o enredo varie de um livro para outro, dá um certo alívio constatar que algumas personagens estão firmes e fortes nos esperando.

Não foi do nada que Camilleri criou tal estrutura narrativa. Simenon já havia feito algo assim a partir do final dos anos 20, com a série que tem o comissário Maigret como personagem central. Maigret, sua esposa e auxiliares vão dando as caras regularmente. Não tem como o leitor não ficar íntimo dessa gente.

No documentário em que Camilleri homenageia Simenon, tal semelhança é esmiuçada. Seria o caso de dizer que Camilleri plagiou Simenon? Não seria o caso. Sim, ambos trabalham com o tal “elenco fixo”;

sim, ambos escrevem histórias centradas em policiais; sim, seus protagonistas são repletos de defeitos e de cacoetes; sim, Camilleri e Simenon conseguem a dádiva de unir entretenimento com análise psicológica e social. Mas poderíamos escrever um livro com algumas centenas de páginas apontando as diferenças. Certamente algum intelectual de maior envergadura já realizou a empreitada.

A hipérbole não pode ser usada para qualquer coisa, mas aqui ela merece aparecer: Simenon e Camilleri são dois maravilhosos exemplos do prazer que a leitura pode nos propiciar.

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