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Nelson Fonseca Neto

Fora do tempo

09 de Novembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Às vezes acho que abro demais o jogo neste espaço. Conto, por exemplo, de algo que ouvi e que serviu de inspiração para a crônica. Aí, na semana seguinte, as pessoas ficam com receio de falar perto de mim. Como se eu ocupasse meu tempo garimpando situações pitorescas. Fico com a consciência em paz porque quase nunca dou nome aos bois.

Feito o esclarecimento, vamos ao que interessa. Na semana passada, numa certa cidade, numa certa academia de um certo clube, uma certa pessoa disse, depois de ouvir o relato banal de sua interlocutora: ‘Nossa, até senti um arrepio!‘

A certa pessoa não tinha acabado de ouvir um relato macabro. Era coisa bem comum mesmo. Tipo: uma bonita cortina instalada na janela da sala de estar. Que fique claro: não sou abelhudo. Não fico atrás da pilastra de tocaia. As pessoas estão com mania de falar alto. Eu estava bufando na esteira e as ditas certas pessoas estavam conversando empolgadas. A gente acaba ouvindo mesmo.

Cronista adora procurar chifre em cabeça de cavalo. Transforma, muitas vezes, o pequenino em algo digno de nota. Vira e mexe, acaba esmiuçando o que as pessoas tendem a encarar como prosaico. Estou dizendo isso porque o ‘Nossa, até senti um arrepio!‘ foi o gatilho para uma reflexão mais ousada acerca da sociedade atual.

O diálogo que se desenrolou perto de mim na academia trouxe o seguinte pensamento: vivemos sob o domínio da hipérbole. Recorremos gostosamente aos superlativos. Amamos uma esfiha. Adoramos um par de tênis. E por aí vai.

Mas não é apenas uma questão de vocabulário. Passa pelo tom mais exaltado de voz. As pessoas estão berrando mais, não? Ou é chatice minha? Como eu disse alguns parágrafos acima, eu não vou até as conversas; as conversas vêm atém mim. Assim é fácil escrever crônica.

O lance da hipérbole também passa pela expressão das emoções. Longe de mim defender o silêncio, a boca de siri, os esqueletos no armário, mas não vem acontecendo um certo exagero na hora de sair entregando o ouro assim tão fácil? Que o leitor compreenda: é a maneira como eu encaro as coisas. Nada contra se você discordar de mim.

Já me deparei, na padaria, com conversas íntimas sendo levadas num tom de voz indiscreto. Piora, acho eu, quando a coisa vai para as redes sociais. Repito: tem um pessoal entregando o ouro fácil demais. Eu não conseguiria abrir os meus porões assim tão tranquilamente. Vai ver é bobagem minha.

Se a hipérbole invade o terreno das emoções, temos a esperada consequência nas desinteligências. Eu tomo cuidado ao escrever certas coisas aqui porque vai ver estou exagerando e a situação não é bem assim. Ao mesmo tempo, não vou pecar por omissão. Tento ser franco neste espaço.

Pois bem, sem enrolação: sinto a hipérbole no trânsito. Seria de uma burrice estarrecedora afirmar que o trânsito de outrora era pacato e que os motoristas pautavam suas interações por gentilezas como ‘por favor‘ e ‘obrigado‘.

Estamos no Brasil, e a violência sempre correu solta. Só acho que as coisas estão mais, digamos, apimentadas. Ouço uns berros constrangedores de motoristas perto de escola. Palavrões daqueles cabeludos. E isso perto da criançada que circula por ali.

Mas a hipérbole no trânsito não fica nisso. Os carros estão grandões, as manobras estão mais ousadas. As motos fazem um barulho horroroso. Os aceleradores estão sendo acionados com mais volúpia. Vai ver nem é tudo isso e eu estou fazendo onda.

Se assim for, digo sem medo: estou vivendo na época errada. Fazer o quê? De peito aberto, assumo meu anacronismo.

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