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Nelson Fonseca Neto

O livro sonhado

Minhas andanças têm influenciado minhas leituras. Leio com mais carinho livros que revelam autores que reparam nas coisas da cidade

26 de Outubro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Um dia, lá no começo dos anos 2000, um amigo perguntou qual livro eu gostaria de ter escrito. Naquela época eu estava muito envolvido com os contos de Dalton Trevisan. Então, naturalmente, eu respondi: “Guerra conjugal”. Para muitos, é o auge da carreira de Dalton Trevisan. Ainda hoje olho com carinho para aqueles contos. A admiração não tem o fervor de antigamente, mas ainda se sustenta com força. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Curioso como alguns livros são inatingíveis. Nem em sonho cogitamos escrever algo parecido com alguns deles. Exemplos que surgem na minha cabeça: “Guerra e paz” e “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Não quero aborrecer o leitor com explicações literárias. Basta dizer que eles são o fino da bola quando o assunto é romance.

Mais recentemente eu responderia ao meu amigo: eu gostaria de ter escrito os livros policiais de Simenon, protagonizados pelo inspetor Maigret. Tentaria seguir o ritmo frenético do escritor belga. Um livro a cada dois meses. Cento e poucas páginas. Escassos adjetivos. Cada história iluminando um aspecto da sociedade.

Ainda na seara policial, quem sabe eu poderia ter escrito um dos romances de Brian Moore, com a exata combinação de densidade política com entretenimento? Seria divertido. Ultimamente tenho pensado nesse lance de diversão no processo da escrita.

Leio um livro e cravo se aquele escritor se divertiu ou não na hora de escrever. Diversão e trabalho duro não se excluem. Talvez eu esteja enganando, mas gente como Andrea Camilleri, Machado de Assis, Muriel Spark e John Irving estão se divertindo à beça enquanto trabalham. E isso não tira o brilho de suas obras. Muito pelo contrário.

Já escrevi algumas vezes aqui: tornei-me um andarilho, e isso me deixa feliz. Eu ando por aí e vou reparando em coisas que passavam despercebidas. A lista é longa. Parece um treco meio místico, mas não é: o quarteirão de nossa casa é de uma riqueza absurda. É só estar a fim de encarar a bronca. A realidade tem dessas coisas.

Minhas andanças têm influenciado minhas leituras. Leio com mais carinho livros que revelam autores que reparam nas coisas da cidade. Gay Talese e Joseph Mitchell são ótimas pedidas para os que ainda se deslumbram com a cidade. Deslumbrar-se não é ficar estarrecido com a beleza convencional. Muitas vezes o que é tido como feio é altamente revelador.

Nesta toada, sou meio andarilho, meio historiador. Não o historiador dos grandes movimentos. Historiador das miudezas. Historiador, curioso, observador. Nada muito metódico. Nada que possa resultar em obras. Apenas um jeito divertido e instigante de levar a vida.

Amando a cidade naquilo que ela tem de belo e grotesco, abro, sempre que posso, uma das obras mais espantosas que conheço: “História das ruas do Rio”, de Brasil Gerson. Ali eu encontro a pesquisa histórica disciplinada, o gosto pela anedota, a volúpia do caminhar, o amor pelos detalhes. Tudo entrelaçado, tal qual aquelas conversas que prendem nossa atenção por horas.

Hoje eu responderia ao meu amigo: se tivesse escrito algo que chegasse perto da empreitada de Brasil Gerson, eu me daria por satisfeito.

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